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Se Cervantes fosse
escritor nos alvores dos vigésimo primeiro século, tinha de pôr ventoinhas
eólicas na onírica dimensão de D. Quixote de La Mancha. Pois já não há moinhos.
Em não os havendo, a personagem teria de encastelar os sonhos nas pás que se
movem pela batuta do vento que transige no cume das serras. D. Quixote teria de
contemplar a fileira de ventoinhas, umas atrás das outras a preencher a
cumeada, e dali tecer o enredo dos seus sonhos.
O Rocinante ficaria para
provas de equitação; D. Quixote dos modernos tempos viria a trote de uma
bicicleta BTT para melhor sulcar os trilhos serranos que levam às cumeadas.
Dulcineia já não seria uma platónica paixão, que D. Quixote, como
personificação da modernidade, não se ficaria pela dimensão etérea de um amor
ausente. Quixote trataria de se enamorar (no sentido pragmático da palavra – a
ver vamos o seu significado pelo espelho da atualidade) de uma Sónia qualquer,
nem se exasperando ao notar que a Sónia requisitada dispensa o acento grave ao
escrever o seu nome de batismo. Quixote só queria saciar os prazeres
voluptuosos, pois o hedonismo não deixa lugar a personagens embebidas num
lirismo atávico. Depois dos prazeres, diria à Sónia requisita para ir à sua
vidinha, partindo em demanda de uma Patrícia, de uma Deolinda, ou de uma
Augusta noutras paragens por visitar. E D. Quixote já não andaria com o pajem
Sancho Pança, que estes não são tempos que admitam vassalagens deste calibre. Aliás,
só lhe podiam chamar Quixote, que os “Dom” fazem parte de uma nobreza esbatida
nas sombras do passado.
Contudo, como proeminente
personagem de um reino acastelado nos sopés das montanhas dominados pelas
ventoinhas eólicas, Quixote teria uma trupe. Seguidores que o acalmam como guru
espiritual, emulando-o nos dizeres, repetindo-o na roupagem e no corte de
cabelo, na barba hirsuta em voga, nos meneios que fazem escola. E Quixote de La
Mancha, ou Serafim de Carrazedo de Montenegro, lá ia de tasca em tasca, de boite em boite, bebendo, comendo, sonhando com o vento que se deita nas pás
das ventoinhas eólicas e deitando dente a umas donzelas destravadas.
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