Noiserv,
“Where Is My Mind”, in https://www.youtube.com/watch?v=NPf4kdHDyOg
As mãos desenhavam letras
encadeadas, letras que serpenteavam no vazio as palavras que se soerguiam no
pensamento. Era tempo de matar o tempo, enquanto a insónia prolongava o tédio
pela embocadura da noite. Como sempre, sitiado na solidão voluntária, que era
sempre o menor dos males comparado com a possibilidade da servidão dos outros.
Como sempre, no esconderijo que elegera como seu, umas águas furtadas que o
observador desatento não conseguia discernir.
Nas águas furtadas onde
dominava o frio e a humidade convocava o agasalho para se amotinar contra o
ruído ensurdecedor da rua lá fora. Mesmo à noite: as águas furtadas estavam num
prédio no centro da cidade, onde agora acontecia a folia noturna dos bon vivants. Habituara-se. Era como se
as águas furtadas fossem hermeticamente fechadas ao resto do mundo e nem o
troar das colunas de som dos bares e a algazarra dos miúdos e não tão miúdos
embriagados não conseguiam subir ao nível das águas furtadas.
Os vizinhos quase não sabiam
da sua existência. Como saía à rua ainda de madrugada e regressava a meio da
tarde, não era habitual cruzar-se com a vizinhança. Furtivo, desviava o olhar
quando acontecia encontrar alguém na apertada escadaria do prédio. Era assim em
todo o lado. No emprego, não era prestável nem se empenhava em socializar. Os
colegas dividiam-se entre os que gracejavam dele e os que o ignoravam mercê do low profile que cultivava. Não se lhe
conhecia família – pelo menos na grande cidade. Se viera da província, e de onde
viera, era outro enigma; o sotaque não o denunciava, tão normal como o de
qualquer outro munícipe.
Nas noites de insónia,
repartia o tempo entre divagações vertidas em papel, olhares temporários
espreitados por uma nesga da janela, música metida pelos ouvidos através de
auriculares, a coreografia das mãos que articulavam palavras esparsas no vazio
e a inútil demanda do sono. Havia noites tomadas de fio a pavio pelas inglórias
tarefas. Não sabia o que o consumia. Não eram as outras pessoas, que a sua
sociopatia era delas rejeição natural. Talvez fosse ele próprio. A falta de
jeito para ser um ser convivial. Não era fácil ser quem era. E não queria
imputar aos outros os destroços que era. Ou, então, era apenas um artifício
para fugir aos descaminhos que (achava) eram semeados pelos outros quando os
outros esbarravam na sua existência.
Só havia uma consumição
maior que a solidão que, verdadeiramente, não admitia como apoquentação: morrer
sozinho. Admitia que as águas furtadas seriam o lugar para os prantos assim se
fizesse anunciar o tocar de finados. Era o lugar à medida da sua irrelevância.
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