23.3.15

O nome do diabo


Gorillaz, “Stylo”, in https://www.youtube.com/watch?v=nhPaWIeULKk
O povo, tão temente de deus, às vezes atropelava o catecismo. Era quando dizia, em jeito de aforismo popular, “o diabo está nos detalhes”. Profundo desconhecedor da sua própria ignorância (mas quem admite que é apedeuta?), o povo tinha episódicos, mas todavia regulares, momentos de desenraizamento religioso e partia em demanda do demónio. Percebia-se. Se o povo era temente de deus, tudo faria para não ser apoquentado pelo mafarrico. O erro estava na medida da análise: o povo devia ser adorador do seu deus, mas tudo o que conseguia era ser-lhe temente. O medo era o critério da existência.
Em desengano dos populares misticismos, o diabo não estava nos detalhes. Estava em todo o lado. Só lhe faltava saber, numa intolerável dúvida metódica que fazia estremecer os dogmas sagrados das escrituras, se o bom deus também não estava possuído pelo demo. Ele havia tanta maldade, tanta inveja, tanta avareza, tanta rudeza no trato, tanta insensibilidade pelos inditosos seres, que só a contaminação de tudo pelos tentaculares braços do demónio podia ser explicação. Não podia ser da natureza dos homens, que era estruturalmente boa. Teria de haver entidade exterior a perturbar a harmonia das coisas. Um ser contrário ao bom deus que, de tão poderoso, deus não conseguia domar. O diabo.
Os varões iam em peregrinação, monte acima, até ao pequeno santuário que encimava a cumeada. Iam sempre em dia de intempérie, não fosse aparecer o diabo e assustá-los com a carantonha medonha. O mau tempo tinha esse valimento: ofuscava os rostos em redor. A subida era difícil. Os homens chegavam exaustos ao apogeu da peregrinação. Entoavam preces à volta do santuário. Pediam ajuda divina: que viesse um clarão do céu, irrompendo entre a morrinha dominante, cintilando o nome do diabo no telhado do santuário. Destarte, podiam os varões contar a boa nova a toda a gente: “escutai com atenção, boa gente da aldeia, o nome do diabo é...” De todas as vezes, desciam ao casario sem novas diferentes das de outrora. Deus não enviava o sinal esperado.
O tempo fez a sua passagem e alguns varões perderam ânimo. Não viam resultados da peregrinação. A tradição só pela tradição não chegava para arrastar os cansados ossos pela ladeira acima. A crença foi-se esbatendo. Alguns chegavam a perguntar se deus não tinha sido dominado pelo diabo, tamanha a improficuidade da tarefa. Ou se o diabo, afinal, tinha muitos nomes. Tantos, que não cabiam nas páginas do almanaque de deus.

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