18.3.15

O marégrafo das lágrimas

Cocteau Twins, “Those Eyes, That Mouth”, in https://www.youtube.com/watch?v=iD0STDHNM8A
Diziam que era na foz do rio. Naquele braço de terra que avançava sobre o estuário do rio, já o rio a confluir no seu ocaso. Era um aparelho de que poucos conheciam a finalidade. Por muito tempo, levas de estudantes e até de cientistas, em visitação ao lugar, julgaram tratar-se de um aparelho para medir o tamanho e o tempo das marés. Os poucos guardadores do segredo nunca os quiseram desenganar. Ficavam indiferentes ao entusiasmo dos cientistas quando descreviam os propósitos do aparelho. Pobres dos estudantes. Nem sonhavam com o embuste.
O aparelho sofisticado abrigava um registo escrupuloso das lágrimas vertidas por cada alma viva. (Os registos dos que tinham finado eram transladados para a Torre do Tombo.) Cada mortal, acaso soubesse da serventia da maquineta, podia saber quantos litros de lágrimas, mais as casas decimais até ao terceiro algarismo, vertera. Cientista algum conseguiu decifrar um enigma: como podia o aparelho contar as lágrimas choradas por cada pessoa? O enigma tornava-se mais espesso. Se o aparelho fora criação humana, alguém tutelava a sua paternidade e podia conferir explicação para a contabilidade das lágrimas, se elas nem eram recolhidas mal se emancipavam das pálpebras.
Não interessava desemaranhar o mistério. Há coisas que merecem ficar na aura do segredo, abraçadas a um misticismo que conduz muita gente pelo mundo fora. O que interessava era o património lacrimal de cada pessoa, viva ou finada, em registos acessíveis durante a vida de quem era vivo e emoldurados em almanaques empoeirados na Torre do Tombo para os que partiram de entre os vivos. Se o segredo fosse descoberto, era possível açambarcar informações sobre a propensão para a lágrima de cada pessoa. Por isso caíra uma cortina densa, como se fosse segredo de Estado, sobre os dados do marégrafo das lágrimas.
As lágrimas são afirmações de afetividade que depressa se confundem com fragilidade. Tem-se a gente chorosa como gente que abana à primeira contrariedade e se desfaz em lágrimas, como se as lágrimas vertidas pudessem ser a solução para os males que as destravam. São conhecidas as imberbes exibições marialvas que estipulam não ser dado ao homem, ao homem embebido de pura masculinidade, dissolver-se em prantos. O marégrafo das lágrimas era um segredo para memória futura. Um arquivo singular das emoções avivadas que desaguam em lágrimas.
As lágrimas vertidas e resgatadas em números pelos ponteiros do marégrafo eram a água do rio que desmaiava no mar que servia de seu refúgio.

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