Zero
7, “Destiny”, in https://www.youtube.com/watch?v=INn1C6ImJKg
De cada vez que o pai,
diplomata de carreira, mudava de cidade, a menina fazia um luto de dias. Não é
que tivesse guardado na memória gratificações das cidades onde vivera; mas não
gostava de emalar os pertences e partir para o desconhecido. Não se enraizava
nem conseguia fazer amizades, como devia acontecer às meninas da idade dela,
tanto o nomadismo da profissão do pai.
Desta vez, as coisas
soavam de outra maneira. Estava enfeitiçada pela cidade onde aterrara. A cidade
não tinha particulares belezas, nem era uma daquelas cidades que convocam uma
miríade de gente apaixonada que não se importa de as visitar vezes e vezes a
perder de conta. Era por causa dos gelados. Ela, que nem tinha especial apreço
pela iguaria, experimentou-os com alguma desconfiança. Fora tentada pela cara
dos gelados que se expunham, em jeito de irrecusável convite estético, nas
montras das geladarias viradas para o exterior. Eram sabiamente esculpidos,
obrigando quem passava nas imediações a deslocar o olhar na sua direção. Foi
quando a menina aprendeu o significado de “comer com os olhos”.
Antes de meter as
primeiras colheradas do primeiro gelado à boca, estava de pé atrás. Como foi
dito, não era admiradora de gelados e irritara-se por não ter sabido resistir
ao apelo da estética do mostruário de gelados não inocentemente virado para a
rua. Quando as primeiras colheradas do gelado chegaram à boca (era gelado de
avelã), só se recorda de ter estacionado no lugar da ocorrência. Não saiu do
sítio até ter terminado a função. Estava deliciada com a iguaria. A espessura
suave e aveludada do gelado, o sabor da avelã avivado, sem passar da medida do
açúcar (e, por isso, não enjoativo – o que dantes a punha longe das lojas que
vendem gelados). Antes de fazer amigos na nova cidade, perdeu-se de amores
pelos gelados.
Ao início, comia um por
dia. De cada vez que fazia o pedido tinha mais dificuldade em escolher o sabor.
E, de cada vez que ia comprar um gelado, mais os olhos se enamoravam do quadro
estético dos gelados artesanais. Era o melhor dos mundos: os olhos também
comiam, mas não era como tantas vezes, só para esconder o anódino da iguaria. A
certa altura, deixou de reprimir os instintos. Começou a comer dois gelados por
dia. Depois, três. Já ia em dose diária de cinco sorvetes quando deu consigo a
meter travões a sair de casa, com a ajuda da disciplina mental em que tivera
sido educada: já chegavam as saídas necessárias, para a escola e para o ballet, de onde resultavam regressos com
passagem imperativa por uma das geladarias artesanais. Foi inventariando os
sabores já experimentados. E por maior que fosse a constelação de sabores
postos à venda, ao fim de dois meses já estavam todos inventariados nas suas
papilas gustativas.
Engordou – causalidade
irremediável de tantos gelados abocanhados. E já não sabia se rezava para o pai
ser colocado noutro país, ou se as orações deviam ir para a estabilidade do
poiso.
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