Sonic Youth, “Sunday”, in https://www.youtube.com/watch?v=2CXD8PK6Djc
Uma sirene avulsa interrompe o silêncio. Um carro
estouvado rompe o asfalto da avenida deserta, contrastando com o vagaroso tempo
que se compõe na madrugada. A luz escondida no que resta da penumbra tardia
procura o seu alvor. As árvores estão sitiadas pela ausência de vento. Ocasionalmente,
um avião interrompe o silêncio no silvo aflitivo da descida para a pista de
aterragem.
A cidade está quase a desentorpecer. Parece o motor de
combustão de um automóvel que precisa de tempo para debitar em pleno. Há um curto
espaço de tempo, a mediação entre a noite perlongada e a alvorada, em que tudo
parece suspenso no tempo, como se nada estivesse inscrito no mapa dos
acontecimentos. Se estivesse a chover, dir-se-ia que as gotas vinham ao chão em
câmara lenta, que seria possível ver uma particular gota despenhando-se no chão,
a partir-se em múltiplas partículas de água rociando as imediações do lugar
atingido pela gota de chuva. O voo dos pássaros parece uma levitação. E até o
rio exterioriza águas paradas, sem ondas, sem se notar a fluência do caudal para
a foz. Um gato espreguiça-se no beiral da janela que foi aberta para refrescar
a casa dos exagerados efeitos estivais que não desarmam por dias consecutivos.
Em desuso da maré, dois rapazes cambaleiam pela avenida fora
vociferando coisas ininteligíveis, à mercê do álcool excessivo e da boémia
incorrigível. Uma senhora de meia-idade, sentada na paragem do autocarro, ao início
olha com desconfiança para os estroinas tardios, mas depressa os mete no
desolhar da irrelevância. Contrariando a impressão de que o tempo estava interrompido,
o dia clareia ainda antes de o sol começar a tomar conta do seu lugar.
Não tarda, o sortilégio da madrugada extingue-se: os
carros invadem a avenida, as árvores agitam-se provavelmente com a agitação da
cidade (pois o vento continua nulo), os aviões sucedem-se numa desenfreada
correria para a pista de aterragem, se estivesse a chover a chuva cairia célere,
os pássaros terçam voos rasantes, o rio ri-se da cidade enfim viva, o gato sacia
a fome, os estroinas recolhem-se aos aposentos e a senhora de meia-idade, já de
esfregona na mão, faz a limpeza dos escritórios da empresa multinacional.
E a madrugada, breve interrupção do tempo em sua forma
maravilhosamente madraça, deixou de o ser. Devolveu a normalidade à cidade usual.
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