28.7.16

Madrugada

Sonic Youth, “Sunday”, in https://www.youtube.com/watch?v=2CXD8PK6Djc
Uma sirene avulsa interrompe o silêncio. Um carro estouvado rompe o asfalto da avenida deserta, contrastando com o vagaroso tempo que se compõe na madrugada. A luz escondida no que resta da penumbra tardia procura o seu alvor. As árvores estão sitiadas pela ausência de vento. Ocasionalmente, um avião interrompe o silêncio no silvo aflitivo da descida para a pista de aterragem.
A cidade está quase a desentorpecer. Parece o motor de combustão de um automóvel que precisa de tempo para debitar em pleno. Há um curto espaço de tempo, a mediação entre a noite perlongada e a alvorada, em que tudo parece suspenso no tempo, como se nada estivesse inscrito no mapa dos acontecimentos. Se estivesse a chover, dir-se-ia que as gotas vinham ao chão em câmara lenta, que seria possível ver uma particular gota despenhando-se no chão, a partir-se em múltiplas partículas de água rociando as imediações do lugar atingido pela gota de chuva. O voo dos pássaros parece uma levitação. E até o rio exterioriza águas paradas, sem ondas, sem se notar a fluência do caudal para a foz. Um gato espreguiça-se no beiral da janela que foi aberta para refrescar a casa dos exagerados efeitos estivais que não desarmam por dias consecutivos.
Em desuso da maré, dois rapazes cambaleiam pela avenida fora vociferando coisas ininteligíveis, à mercê do álcool excessivo e da boémia incorrigível. Uma senhora de meia-idade, sentada na paragem do autocarro, ao início olha com desconfiança para os estroinas tardios, mas depressa os mete no desolhar da irrelevância. Contrariando a impressão de que o tempo estava interrompido, o dia clareia ainda antes de o sol começar a tomar conta do seu lugar.
Não tarda, o sortilégio da madrugada extingue-se: os carros invadem a avenida, as árvores agitam-se provavelmente com a agitação da cidade (pois o vento continua nulo), os aviões sucedem-se numa desenfreada correria para a pista de aterragem, se estivesse a chover a chuva cairia célere, os pássaros terçam voos rasantes, o rio ri-se da cidade enfim viva, o gato sacia a fome, os estroinas recolhem-se aos aposentos e a senhora de meia-idade, já de esfregona na mão, faz a limpeza dos escritórios da empresa multinacional.
E a madrugada, breve interrupção do tempo em sua forma maravilhosamente madraça, deixou de o ser. Devolveu a normalidade à cidade usual.

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