Primal Scream, “Loaded”, in
https://www.youtube.com/watch?v=Y3ixEzKA4k0
A selva trazia a tiracolo o calor repressivo,
regado por uma humidade que sufocava se o corpo ensaiasse um esforço. A roupa,
colada ao corpo suado, era o maior dos incómodos (se fossem descontados o clima
implacável que causava o incidente e uma nuvem que atacava a lucidez do pensamento).
Nem se lembrava do pavor a serpentes – e aquele lugar, pelas suas características,
pela vegetação densa onde só com a ajuda de catanas se abria caminho, era propício
à proliferação de répteis. A camioneta estava fora do prazo de validade, como
tinha pressagiado mal entrara. Foi avariar logo no coração da selva luxuriante,
deixando os passageiros ao deus-dará.
De acordo com o motorista, a
localidade mais próxima distava a duas horas de caminho se fossem pela estrada;
se atalhassem caminho pela selva, que pelos preparos em que se oferecia parecia
inexpugnável, talvez chegassem em quarenta e cinco minutos. Como é das convenções,
as mulheres e as crianças foram poupadas à expedição involuntária. Ele não
sabia o que era pior: ficar a crestar dentro do autocarro, com a humidade abrasadora
a subir por todos os poros, no necessário racionamento da pouca água
conservada; ou meter-se ao caminho, confiando no motorista que, de catana empunhada
em movimentos firmes para um lado e depois para o outro, desbastava o mato que
aparecia pela frente. Não podia dar parte de fraco. Os outros homens – até um
definitivamente sexagenário (a não ser que aqueles nativos latino-americanos,
com sangue mestiçado dos antepassados índios, conseguissem esconder a idade
verdadeira) – foram resolutos quando o motorista despiu a camisa da empresa e,
em camisola interior, desafiou os homens a serem sua companhia na demanda de
ajuda.
A intrepidez nunca foi seu
pergaminho. Não era agora que ia ser diferente. Para não passar vergonha,
alinhou com os demais passageiros masculinos na expedição. Não lhe pedissem
para ir à frente: estava fora do seu habitat,
era o único passageiro estrangeiro. Deixou-se ficar na cauda da fila indiana
que ia desmatando a vegetação emaranhada. A certa altura, no que era autorizado
pelo pensamento embaciado pelo calor destemperado pela humidade, deu conta que
aquele lugar tinha as condições propícias para o povoamento abundante de cobras
e espécies adjacentes. Perguntou ao homem à sua frente:
-
Aqui há cobras?
-
Estás numa selva tropical, qual é a dúvida?
-
Elas atacam as pessoas?
-
Às vezes. Depende. Se forem atacadas, reagem. Se alguém calcar uma serpente,
ela sente-se atacada.
-
São venenosas?
-
Há as venenosas e as que não são. Entre as venenosas, há algumas que têm um
veneno mortal, se o antídoto não chegar a tempo.
-
Estamos a correr riscos...
-
Claro. Mas não cortamos caminho pela selva de ânimo leve.
-
Podíamos ir pela estrada.
-
Chegávamos ao entardecer. As oficinas estão fechadas. Era uma viagem em vão. E as
mulheres e as crianças ficavam sozinhas, desprotegidas nas trevas da selva.
-
Temos garantias que chegamos a tempo por este caminho?
-
Tens de perguntar ao motorista.
-
Tu não conheces o lugar?
-
Não. Ninguém conhece. Repara que o caminho tem de ser feito pela catana do
motorista. Nunca houve uma alma a passar por aqui.
-
E confias no motorista? Sabes se ele conhece a região ao ponto de assegurar que
chegamos à localidade em quarenta e cinco minutos?
-
Se não confiar no motorista, vou confiar em quem?
-
Essa resposta não me sossega.
-
Repara: o motorista não ia ser louco em expor as mulheres e as crianças às
trevas da floresta noturna. Deve saber o que está a fazer.
-
É habitual os motoristas de autocarros tomarem esta decisão quando há avarias?
-
Não sei. É a primeira vez que viajo nesta região.
-
Estou admirado com a tua calma. E com a confiança que depositas no motorista,
depois de tudo o que acabaste de dizer.
-
Tenho alternativa?
-
Podias ter desertado, podias ter ficado no autocarro a tomar conta das mulheres
e das crianças. Se o tivesses feito, eu tinha ficado contigo.
-
Acalma-te! Deixa-me dizer isto que é muito importante: nesta zona, a coragem
masculina faz parte de um código de honra. Mesmo que os estão tomados pelo medo
conseguem sufocá-lo, passam uma imagem que não corresponde ao medo interior que
os paralisa.
-
Estás com medo, portanto?
-
Não o digo a ninguém. Olha para mim! É-te dado a perceber que estou mergulhado
no medo?
-
Tens razão. Disfarças bem.
-
Continuemos a marcha.
-
E o que acontece se o motorista se enganar? Ou se uma cobra morder alguém e for
uma das tais cobras muito venenosas e o antídoto não chegar a tempo?
-
Pode haver baixas quando estas expedições involuntárias acontecem. Nenhum homem
pode dar a entender que pode ser a primeira vítima, ou a próxima vítima.
-
Temos todos de fazer de conta, é disso que me queres convencer?
-
Mais palavra, menos palavra, é isso.
-
Devia ter ficado no autocarro. Assim como assim, eu é que sou o estrangeiro. Os
vossos valores não se aplicam a mim.
-
Não digas isso. Quando regressássemos, serias o alvo do nosso escárnio.
-
Que mal menor! Com esse escárnio, podia eu bem.
-
Continuemos a marcha, pois.
-
Estás com uma confiança inabalável de que vamos regressar a tempo e com a ajuda
de um mecânico.
-
Pois estou. Vou-te segredar isto: nesta terra, acreditamos que a força da mente,
com a proteção divina, remove os obstáculos que for preciso. Se hesitarmos, se
nos deixarmos consumir por interrogações sucessivas, os deuses desconfiam de nós
e retiram a proteção que nos é devida. Os deuses protegem-nos porque somos
homens bons a tentar salvar as mulheres e as crianças que ficaram para trás.
-
Não vou perguntar mais nada. Vou acreditar no que dizes, mesmo que não tenha
razão para acreditar em tamanha metafísica.
-
Não tens outra hipótese.
-
Eu sei, eu sei. Para o meu bem-estar (e dos demais passageiros – corrigiu a tempo) vou acreditar no que me dizes.
Enquanto proferia estas palavras,
sentia que ficou à mercê de um contra-ataque argumentativo do outro homem. Ele
podia testar o seu oportunismo, até que ponto mantinha a coluna vertebral:
convinha acreditar na proteção dos deuses locais, mesmo que não acreditasse em
tais deuses. Este súbito acesso gnóstico era desapalavrado. Mas o outro homem
ficou satisfeito com as derradeiras palavras do carteiro. Não tinha a densidade
argumentativa do carteiro – assim interiorizou, sem dar conta que o outro homem
não queria empenhar-se na complexidade inquisitória do carteiro que,
habitualmente, era um caminho sem fim. Naquela altura, a prioridade era dar um
fim certo ao caminho desmatado pela catana do motorista do autocarro decadente.
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