2.5.17

Correio atrasado (33)


Primal Scream, “Loaded”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y3ixEzKA4k0    
A selva trazia a tiracolo o calor repressivo, regado por uma humidade que sufocava se o corpo ensaiasse um esforço. A roupa, colada ao corpo suado, era o maior dos incómodos (se fossem descontados o clima implacável que causava o incidente e uma nuvem que atacava a lucidez do pensamento). Nem se lembrava do pavor a serpentes – e aquele lugar, pelas suas características, pela vegetação densa onde só com a ajuda de catanas se abria caminho, era propício à proliferação de répteis. A camioneta estava fora do prazo de validade, como tinha pressagiado mal entrara. Foi avariar logo no coração da selva luxuriante, deixando os passageiros ao deus-dará.
De acordo com o motorista, a localidade mais próxima distava a duas horas de caminho se fossem pela estrada; se atalhassem caminho pela selva, que pelos preparos em que se oferecia parecia inexpugnável, talvez chegassem em quarenta e cinco minutos. Como é das convenções, as mulheres e as crianças foram poupadas à expedição involuntária. Ele não sabia o que era pior: ficar a crestar dentro do autocarro, com a humidade abrasadora a subir por todos os poros, no necessário racionamento da pouca água conservada; ou meter-se ao caminho, confiando no motorista que, de catana empunhada em movimentos firmes para um lado e depois para o outro, desbastava o mato que aparecia pela frente. Não podia dar parte de fraco. Os outros homens – até um definitivamente sexagenário (a não ser que aqueles nativos latino-americanos, com sangue mestiçado dos antepassados índios, conseguissem esconder a idade verdadeira) – foram resolutos quando o motorista despiu a camisa da empresa e, em camisola interior, desafiou os homens a serem sua companhia na demanda de ajuda.
A intrepidez nunca foi seu pergaminho. Não era agora que ia ser diferente. Para não passar vergonha, alinhou com os demais passageiros masculinos na expedição. Não lhe pedissem para ir à frente: estava fora do seu habitat, era o único passageiro estrangeiro. Deixou-se ficar na cauda da fila indiana que ia desmatando a vegetação emaranhada. A certa altura, no que era autorizado pelo pensamento embaciado pelo calor destemperado pela humidade, deu conta que aquele lugar tinha as condições propícias para o povoamento abundante de cobras e espécies adjacentes. Perguntou ao homem à sua frente:
- Aqui há cobras?
- Estás numa selva tropical, qual é a dúvida?
- Elas atacam as pessoas?
- Às vezes. Depende. Se forem atacadas, reagem. Se alguém calcar uma serpente, ela sente-se atacada.
- São venenosas?
- Há as venenosas e as que não são. Entre as venenosas, há algumas que têm um veneno mortal, se o antídoto não chegar a tempo.
- Estamos a correr riscos...
- Claro. Mas não cortamos caminho pela selva de ânimo leve.
- Podíamos ir pela estrada.
- Chegávamos ao entardecer. As oficinas estão fechadas. Era uma viagem em vão. E as mulheres e as crianças ficavam sozinhas, desprotegidas nas trevas da selva.
- Temos garantias que chegamos a tempo por este caminho?
- Tens de perguntar ao motorista.
- Tu não conheces o lugar?
- Não. Ninguém conhece. Repara que o caminho tem de ser feito pela catana do motorista. Nunca houve uma alma a passar por aqui.
- E confias no motorista? Sabes se ele conhece a região ao ponto de assegurar que chegamos à localidade em quarenta e cinco minutos?
- Se não confiar no motorista, vou confiar em quem?
- Essa resposta não me sossega.
- Repara: o motorista não ia ser louco em expor as mulheres e as crianças às trevas da floresta noturna. Deve saber o que está a fazer.
- É habitual os motoristas de autocarros tomarem esta decisão quando há avarias?
- Não sei. É a primeira vez que viajo nesta região.
- Estou admirado com a tua calma. E com a confiança que depositas no motorista, depois de tudo o que acabaste de dizer.
- Tenho alternativa?
- Podias ter desertado, podias ter ficado no autocarro a tomar conta das mulheres e das crianças. Se o tivesses feito, eu tinha ficado contigo.
- Acalma-te! Deixa-me dizer isto que é muito importante: nesta zona, a coragem masculina faz parte de um código de honra. Mesmo que os estão tomados pelo medo conseguem sufocá-lo, passam uma imagem que não corresponde ao medo interior que os paralisa.
- Estás com medo, portanto?
- Não o digo a ninguém. Olha para mim! É-te dado a perceber que estou mergulhado no medo?
- Tens razão. Disfarças bem.
- Continuemos a marcha.
- E o que acontece se o motorista se enganar? Ou se uma cobra morder alguém e for uma das tais cobras muito venenosas e o antídoto não chegar a tempo?
- Pode haver baixas quando estas expedições involuntárias acontecem. Nenhum homem pode dar a entender que pode ser a primeira vítima, ou a próxima vítima.
- Temos todos de fazer de conta, é disso que me queres convencer?
- Mais palavra, menos palavra, é isso.
- Devia ter ficado no autocarro. Assim como assim, eu é que sou o estrangeiro. Os vossos valores não se aplicam a mim.
- Não digas isso. Quando regressássemos, serias o alvo do nosso escárnio.
- Que mal menor! Com esse escárnio, podia eu bem.
- Continuemos a marcha, pois.
- Estás com uma confiança inabalável de que vamos regressar a tempo e com a ajuda de um mecânico.
- Pois estou. Vou-te segredar isto: nesta terra, acreditamos que a força da mente, com a proteção divina, remove os obstáculos que for preciso. Se hesitarmos, se nos deixarmos consumir por interrogações sucessivas, os deuses desconfiam de nós e retiram a proteção que nos é devida. Os deuses protegem-nos porque somos homens bons a tentar salvar as mulheres e as crianças que ficaram para trás.
- Não vou perguntar mais nada. Vou acreditar no que dizes, mesmo que não tenha razão para acreditar em tamanha metafísica.
- Não tens outra hipótese.
- Eu sei, eu sei. Para o meu bem-estar (e dos demais passageiros – corrigiu a tempo) vou acreditar no que me dizes.
Enquanto proferia estas palavras, sentia que ficou à mercê de um contra-ataque argumentativo do outro homem. Ele podia testar o seu oportunismo, até que ponto mantinha a coluna vertebral: convinha acreditar na proteção dos deuses locais, mesmo que não acreditasse em tais deuses. Este súbito acesso gnóstico era desapalavrado. Mas o outro homem ficou satisfeito com as derradeiras palavras do carteiro. Não tinha a densidade argumentativa do carteiro – assim interiorizou, sem dar conta que o outro homem não queria empenhar-se na complexidade inquisitória do carteiro que, habitualmente, era um caminho sem fim. Naquela altura, a prioridade era dar um fim certo ao caminho desmatado pela catana do motorista do autocarro decadente.

Sem comentários: