Nick Cave & Shane MacGowan,
“What a Wonderful World”, in https://www.youtube.com/watch?v=OtsXjHk2ZsI
Era do tamanho das contrariedades que
escolheram o seu cais como palco. Marejava a indisposição geral na espuma de
todos os dias. Não se discernia um sorriso a pintar o rosto. Notava-se um
descuido geral – como vestia, como compunha o cabelo, na barba caótica por
escanhoar; havia alturas em que se não era fugitivo do banho, parecia. Era assim que queria que fosse. Não podia ter
mão nos freios da confiança. Tinham sido vezes de mais a repousar a confiança
no mundo. E o mundo tomou em mãos a resolução de não corresponder. Aprendeu que
a ingenuidade é um punhal afiado que desfaz as dúvidas das dores sofridas.
Houve alturas em que ainda perseverou:
uma contrariedade era apenas uma contrariedade, isolada do resto, sem ligação
que pudesse constituir alicerce para uma teoria geral da conspiração (contra
ele). Mas as contrariedades seguiram-se, umas atrás das outras. Talvez as deceções
fossem o sinal do embuste de si mesmo. Não se perdoava quando era vítima dessas
contrariedades. Elas eram imputadas a atos exteriores à sua vontade, mas não se
perdoava. Porque já tivera o vagar de provar o veneno das contrariedades, sabia
que a confiança não era credora de uma projeção para fora de si. Foram algumas
as vezes. Até que intuiu que não podia continuar a ter a confiança como carnífice.
Os buracos na camisola baça eram o
sinal da metódica desconfiança. Sem saber, era como se esses buracos
representassem os rombos sofridos, a muita água ácida entrada nas veias à custa
dos desencantos estruturais. Agora, sentia-se quase um sociopata. Não queria emparelhamentos
com pessoa nenhuma. Nele medrava um princípio geral da desconfiança da restante
humanidade. A desconfiança começava em si mesmo. Nunca tinha a certeza dos atos
praticados, das palavras ditas, do que ficara por dizer. No imediato instante a
seguir ao acontecido, era tomado de assalto por uma vontade interior em que não
tinha mão. E essa vontade não demorava a convencê-lo que o ato cometido, as
palavras ditas, ou as que ficaram por dizer, eram um erro grotesco.
Tinha de ser rude no trato com os
outros. Pois se foram eles (mesmo que não fossem aqueles sobre os quais a
rudeza era vertida) os tiranetes da sua inocência abruptamente estilhaçada, não
podia ser de outro modo. O tempo limitava-se a ser um extenso deserto. Até que
tudo fosse uma memória reservada à biblioteca onde medra a insignificância de
cada indivíduo.
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