The Durutti Column, “Sara e
Tristana”, in https://www.youtube.com/watch?v=AWvMHrUdiSI
Mal sabia pronunciar as palavras que
subiam à cabeça. Por via das dúvidas, entoava calmamente as sílabas para não se
perder a meio das palavras e elas deixarem de fazer sentido. Era como se, de tão
gastas, as palavras se esvaziassem na sua repetida exibição, diluídas na saliva.
Acabavam depostas no chão frio. Não capitulava: exercício atrás de exercício, a
cada palavra examinada terminava com a mesma sensação que, noutros preparos (isto
é, estivesse a lucidez entronizada), seria o tronco da angústia sentida.
O fumo denso do lobby da pensão emaranhava-se no pensamento. Havia pessoas
recostadas nos sofás encardidos, as pessoas também encardidas, gastas,
imperturbáveis no consumo dos cigarros que emprestavam a nuvem densa de fumo ao
lobby da pensão. As pessoas não
falavam umas com as outras. No balcão, o rececionista ensaiava uma dança
exuberante, fazendo companhia à música tribal que ecoava de um lugar perdido. O
carteiro estava tão cansado que tinha de se sentar. Foi ter com o primeiro sofá
livre, o sofá com um lugar livre, que os outros dois tinham inquilinos na mesma
pose deslaçada do resto. O lugar livre tinha um remendo em pano gasto, por sua
vez em cima da fazenda ainda mais gasta e suja do sofá. Pediu licença, por obséquio
da boa educação de que se tinha como cultor. Os inquilinos dos restantes
lugares do sofá não ligaram – ou não estavam em condições para digerir as
palavras do forasteiro. Sentou-se e sentiu o alívio das pernas já não desfalecidas.
Sem cerimónia, puxou um banco à sua frente e estendeu as pernas na horizontal,
os pés atirados para cima do banco. Afundou-se no sofá e começou a sentir a
deserção dos sentidos.
Havia pensamentos surreais que
desfilavam em contravenção. Um gato despenteado a urinar para a cabeça do inquilino
de um dos sofás. Um copo do avesso em cima do antebraço de um sofá, a mancha
nas imediações denotando como a bebida se vertera em perfeito desaproveitamento.
Uma luz ténue espreitando ao fim do corredor que ia ter ao lobby da pensão e uns ruídos distantes que não conseguia discernir.
A pele das mãos alisada, como se as mãos tivessem perdido as rugas, e as unhas
subitamente ostentando verniz azul. Alguns acordes dedilhados mentalmente –
logo ele, que era ignorante na composição musical. O teto mostrando o que
parecia uma pintura rupestre – ou eram apenas as teias de aranha que sinalavam
a longa ausência de limpeza. As aranhas tentando desprender-se das teias através
de ligeiros movimentos descendentes no sentido das cabeças dos inquilinos da pensão.
Uma senhora velha, todavia sem rugas, os olhos preenchidos pelas olheiras de
quem não tem sono, balbuciando qualquer coisa, como se fosse uma prece
repetitiva. O mesmo gato a aninhar-se no dorso de um homem calvo. A música
tribal que se enovelava numa percussão violenta, como se pressagiasse o eclodir
de um levantamento do povo ancestralmente espezinhado contra os exploradores de
sempre.
Havia um relógio de parede apenas com
o ponteiro das horas, que se movia de acordo com o convencionado (podia-se
dizer, com todo o acerto, que o relógio dava as horas – mas só as horas). Uma mulher
de olhos semicerrados afagando o rosto de um homem absorto. Uma mulher de
limpeza que desceu ao lobby da pensão
com uma varinha mágica na mão ainda a funcionar (mesmo sem estar ligada à
corrente elétrica), a mulher em pose marcial. A visão de uma estrada sinuosa
com precipícios medonhos e um autocarro esforçando-se por vencer cada curva e
manter-se do lado certo da ladeira. Uma lua amarelada salpicada por pingos de
vinho tinto. Os despojos de comida espalhados nas mesas ao lado dos sofás e um
pequeno colibri invasor do lobby da
pensão a debicar nos vestígios. Um senhor bem-apessoado, no uso de uma vetusta
cartola e de calças seguras por suspensórios, a entrar no lobby e a olhar com desprezo para todos os que estavam sentados,
protestando contra a ignomínia da decadência aberta aos seus olhos, enquanto
tapava os olhos de uma jovem menina (não fosse a menina encantar-se pela decadência
do lobby da pensão).
Um homem fora de si seduzindo uma
mulher desinteressada da sedução. Outro homem, exibindo as feições exóticas da
maioria da população local, praguejando em voz alta um poema transcrito de um
poeta oral. Através da janela, a noite nascente e a silhueta das nuvens velozes
encaminhando-se para o ocaso, como se se fossem deitar atrás do horizonte com a
promessa vã de não voltarem. A mulher que afagava o homem absorto a despir a
camisola, deixando à mostra a roupa interior e debaixo uns seios flácidos e
descaídos – e o homem ainda absorto, ainda indiferente. Um piano em ruínas, ao
canto da sala. Sobre a tampa do piano, de onde pedaços da tinta negra tinham sido
decapados, outro gato dormindo um sono sobressaltado. E o carteiro, sentindo o
avesso dos olhos a tomar conta dos sentidos, sem saber se tinha caído no sono
ou se eram apenas visões apocalípticas deixadas em legado pela densa nuvem de
fumo que embaciava o lobby da pensão.
Não sabia onde estavam os outros três
parceiros da involuntária expedição através da selva – já nem se recordava do
recorte dos seus rostos. Queria sair daquela sala tisnada. As pernas recostadas
e o alívio do sofá eram estorvos maiores. Insistiu: haveria de derrotar a
convocatória da apatia, sentiu que precisava de desertar do lobby do hotel (um laivo de lucidez a
entrecortar o ambiente geral de delírio). Olhou em redor. E de cada vez que a
cabeça percorria a rosa-dos-ventos da sala, como se fosse um sextante em
demanda de orientação, era varrida por um tremor e ele não conseguia domar o
corpo, caído em desequilíbrio. Por mais que olhasse em redor, não encontrava a
porta da saída. O lobby da pensão não
tinha porta de saída.
Desta vez, não podia fugir. Adormeceu
recostado sobre o parapeito humedecido e fétido do sofá decadente. Mergulhado em
hibernação tamanha, que ao menos tinha a garantia de ser um sono imune a
sonhos.
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