The Chemical Brothers, “Setting
Sun”, in https://www.youtube.com/watch?v=p5NX1FC-7-w
As luzes atropelavam-se, entrando nos
olhos como dardos envenenados. Uma ténue nuvem adocicada adejava sobre os
corpos, insinuando-se nos sentidos, depressa embaciados. Havia música.
Estrepitosa, um matraquear marcial, desprovida de melodia, crua. As pessoas
cruzavam-se umas com as outras como se as pessoas com que se cruzavam não
existissem. Cruas, as pessoas. No palco, em jeito de promontório que se deitava
à audiência, dois corpos nus de mulheres entrelaçavam-se numa dança libidinosa.
Alguém ao lado do carteiro, amparando os cotovelos no balcão do bar, pediu-lhe
um cigarro. O carteiro, mecanicamente, tirou o maço do bolso e ofereceu dois
cigarros, sem desviar o olhar e sem chegar a tirar as medidas ao rosto do outro
homem. Mais à frente, um homem e uma mulher agitavam os corpos num esboço de
dança a desacompanhar a música. Pareciam em transe, os olhos ausentes num
firmamento por eles desenhado, só por eles conhecido. Cada um dançava para seu
lado, em movimentos assíncronos, descompensados. Não cativaram a atenção de
ninguém, a não ser do carteiro (que desviou o olhar do desempenho do par de
bailarinas nuas no palco encimado).
Quando o carteiro erguia a cabeça,
era como se o cérebro tremesse dentro da ossatura. Como se o cérebro quisesse
irromper as fronteiras delimitadas pela ossatura. Ao seu lado, ouviu uma
combinação não segredada entre dois homens: à saída, iam apanhar um táxi, que não
estavam em condições de conduzir. Depois, um deles segredou qualquer coisa ao
outro. Era dos poucos casos em que não prevalecia a indiferença. Todas as
pessoas traziam um copo na mão. Algumas vertiam uns vestígios de qualquer coisa
no copo. Dentro do bar, uma mulher provocante desfilava de lugar em lugar,
diligente no atendimento. Era outra exceção ao princípio geral da indiferença:
havia homens e mulheres que se demoravam no balcão, apreciando o labor da
empregada, seguindo-a com olhares gulosos. A mulher só queria servir as bebidas
encomendadas pela clientela. Talvez fosse frígida. Talvez estivesse prometida
de amores a alguém e desaprovasse todas as abordagens carnais feitas ora por
homens, ora por mulheres. Ou, talvez, não fosse nada disso.
O carteiro sentia-se cercado pelo
suor. A camisa encostada ao corpo era prova cabal. Dentro daquele lugar, o
calor era maçador. Havia gente em tronco nu, esbracejando os corpos tingidos de
suor. Notava-se um odor insalubre, com a mistura de suores a emprestar o odor
dominante. Ele sentia-se a cheirar mal. Não havia problema. Toda a gente
cheirava mal. A certa altura, ninguém dava conta que cheirava mal. Deixou de
ser um problema.
À medida que os ritmos percutidos da
música repetitiva iam de braço dado com a passagem do tempo, mais gente
ensaiava coreografias sem ordem, mexendo os corpos sem critério. Sempre com um
copo na mão. O vai-e-vem no bar era contínuo. A mulher lúbrica que preparava as
bebidas não tinha mãos a medir. Também estava imersa em suor, o que ajustava
ainda mais a roupa apertada às formas curvilíneas do corpo. Um cliente desassisado,
perante a indiferença da mulher, lançou uma mão para um dos seios da empregada,
agarrando-o com a mão cheia, enquanto disparou um impropério marialva. A mulher
usou a garrafa que tinha na mão e esfrangalhou-a na cabeça do atrevido. Não houve
confusão. Ato contínuo, um segurança com o habitual corpo de paquiderme acorreu
sem demora, expulsando o marialva à força. Quase mais ninguém deu conta do
incidente.
No palco já não estavam as duas
mulheres que se envolveram numa dança lésbica. Os holofotes continuavam acesos,
dando a entender que voltaria a haver função pouco tempo depois. Sem anúncio prévio,
três corpos masculinos em pose feminina deram entrada em palco. Despojaram-se
da roupa de cabaret, ficando em roupa
interior. A performance cativou mais atenção do que o espetáculo anterior,
algumas pessoas intervalando as coreografias aleatórias com a atenção à dança
dos corpos dos homens disfarçados de mulheres.
O carteiro tinha perdido a conta às
bebidas consumidas. Não se importava se a conta no final fosse exorbitante –
nem sequer sabia qual era o preço de cada bebida que tomou. Nada disso tinha
importância. Aquela era a noite que fazia a ligação entre o exílio voluntário e
o regresso a casa. Era um parêntesis no tempo, necessário. Ao mover-se para o
lado contrário da sala, passando por cima de alguns corpos que já estavam fora
de combate, foi parado por uma mulher jovem, macilenta, magra. Mexeu o corpo à
sua frente, meneando uma provocação. A mulher sorriu, abertamente. O seu olhar entrou
no olhar do carteiro, que não se desviou do desafio. A mulher jovem começou a
mexer as ancas, respondendo aos ritmos demenciais da música. Pegou na mão do
carteiro em desafio para a dança. O carteiro não rejeitou a demanda. Desajeitadamente,
começou a mexer o corpo sem critério. Não havia problema: ali, os corpos dançavam
todos desajeitadamente e sem critério; e, ali, só se prestava indiferença aos
demais que não eram distinguidos com atenção. A jovem mulher dedilhou uns grãos
para dentro da bebida do carteiro e usou um dedo para enlaçar a mistela. Ao carteiro
nem apeteceu perguntar o que eram os grãos. Ela segredou algo ao ouvido. A música
tonitruante não deixou entender. Ela repetiu. Queria o carteiro só para ela, só
naquela noite.
A cronologia esteve suspensa. O carteiro
acordou – e percebeu que a cronologia esteve suspensa. Não sabia que horas
eram. Não sabia onde estava. Olhou pela janela entreaberta. A luz do dia
começava a desmaiar. Devia estar quase a entardecer. Olhou para o lado contrário,
onde estava, ainda sonolenta, a rapariga. Já não era neste dia que regressava a
casa. Não estava em condições. Tinha sono e a cabeça não se podia mover nem um
milímetro, pois era como se o seu corpo fosse torpedeado por toda a artilharia
de um exército. Não se coibiu a uma interiorização máscula antes de se entregar
à segunda parte do sono: ainda estava em preparos próprios de combate. E mesmo
que não se lembrasse sequer de ter saído do lugar onde os corpos transidos se
embebiam nas luzes feéricas da noite, acreditava que tinha sido aprovado com
distinção.
Foi o mote para o que sobrava de
sono. Adormeceu, outra vez. E deu consigo mergulhado num palimpsesto do seu próprio
sonho.
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