10.5.17

Correio atrasado (39)


The Chemical Brothers, “Setting Sun”, in https://www.youtube.com/watch?v=p5NX1FC-7-w    
As luzes atropelavam-se, entrando nos olhos como dardos envenenados. Uma ténue nuvem adocicada adejava sobre os corpos, insinuando-se nos sentidos, depressa embaciados. Havia música. Estrepitosa, um matraquear marcial, desprovida de melodia, crua. As pessoas cruzavam-se umas com as outras como se as pessoas com que se cruzavam não existissem. Cruas, as pessoas. No palco, em jeito de promontório que se deitava à audiência, dois corpos nus de mulheres entrelaçavam-se numa dança libidinosa. Alguém ao lado do carteiro, amparando os cotovelos no balcão do bar, pediu-lhe um cigarro. O carteiro, mecanicamente, tirou o maço do bolso e ofereceu dois cigarros, sem desviar o olhar e sem chegar a tirar as medidas ao rosto do outro homem. Mais à frente, um homem e uma mulher agitavam os corpos num esboço de dança a desacompanhar a música. Pareciam em transe, os olhos ausentes num firmamento por eles desenhado, só por eles conhecido. Cada um dançava para seu lado, em movimentos assíncronos, descompensados. Não cativaram a atenção de ninguém, a não ser do carteiro (que desviou o olhar do desempenho do par de bailarinas nuas no palco encimado).
Quando o carteiro erguia a cabeça, era como se o cérebro tremesse dentro da ossatura. Como se o cérebro quisesse irromper as fronteiras delimitadas pela ossatura. Ao seu lado, ouviu uma combinação não segredada entre dois homens: à saída, iam apanhar um táxi, que não estavam em condições de conduzir. Depois, um deles segredou qualquer coisa ao outro. Era dos poucos casos em que não prevalecia a indiferença. Todas as pessoas traziam um copo na mão. Algumas vertiam uns vestígios de qualquer coisa no copo. Dentro do bar, uma mulher provocante desfilava de lugar em lugar, diligente no atendimento. Era outra exceção ao princípio geral da indiferença: havia homens e mulheres que se demoravam no balcão, apreciando o labor da empregada, seguindo-a com olhares gulosos. A mulher só queria servir as bebidas encomendadas pela clientela. Talvez fosse frígida. Talvez estivesse prometida de amores a alguém e desaprovasse todas as abordagens carnais feitas ora por homens, ora por mulheres. Ou, talvez, não fosse nada disso.
O carteiro sentia-se cercado pelo suor. A camisa encostada ao corpo era prova cabal. Dentro daquele lugar, o calor era maçador. Havia gente em tronco nu, esbracejando os corpos tingidos de suor. Notava-se um odor insalubre, com a mistura de suores a emprestar o odor dominante. Ele sentia-se a cheirar mal. Não havia problema. Toda a gente cheirava mal. A certa altura, ninguém dava conta que cheirava mal. Deixou de ser um problema.
À medida que os ritmos percutidos da música repetitiva iam de braço dado com a passagem do tempo, mais gente ensaiava coreografias sem ordem, mexendo os corpos sem critério. Sempre com um copo na mão. O vai-e-vem no bar era contínuo. A mulher lúbrica que preparava as bebidas não tinha mãos a medir. Também estava imersa em suor, o que ajustava ainda mais a roupa apertada às formas curvilíneas do corpo. Um cliente desassisado, perante a indiferença da mulher, lançou uma mão para um dos seios da empregada, agarrando-o com a mão cheia, enquanto disparou um impropério marialva. A mulher usou a garrafa que tinha na mão e esfrangalhou-a na cabeça do atrevido. Não houve confusão. Ato contínuo, um segurança com o habitual corpo de paquiderme acorreu sem demora, expulsando o marialva à força. Quase mais ninguém deu conta do incidente.
No palco já não estavam as duas mulheres que se envolveram numa dança lésbica. Os holofotes continuavam acesos, dando a entender que voltaria a haver função pouco tempo depois. Sem anúncio prévio, três corpos masculinos em pose feminina deram entrada em palco. Despojaram-se da roupa de cabaret, ficando em roupa interior. A performance cativou mais atenção do que o espetáculo anterior, algumas pessoas intervalando as coreografias aleatórias com a atenção à dança dos corpos dos homens disfarçados de mulheres.
O carteiro tinha perdido a conta às bebidas consumidas. Não se importava se a conta no final fosse exorbitante – nem sequer sabia qual era o preço de cada bebida que tomou. Nada disso tinha importância. Aquela era a noite que fazia a ligação entre o exílio voluntário e o regresso a casa. Era um parêntesis no tempo, necessário. Ao mover-se para o lado contrário da sala, passando por cima de alguns corpos que já estavam fora de combate, foi parado por uma mulher jovem, macilenta, magra. Mexeu o corpo à sua frente, meneando uma provocação. A mulher sorriu, abertamente. O seu olhar entrou no olhar do carteiro, que não se desviou do desafio. A mulher jovem começou a mexer as ancas, respondendo aos ritmos demenciais da música. Pegou na mão do carteiro em desafio para a dança. O carteiro não rejeitou a demanda. Desajeitadamente, começou a mexer o corpo sem critério. Não havia problema: ali, os corpos dançavam todos desajeitadamente e sem critério; e, ali, só se prestava indiferença aos demais que não eram distinguidos com atenção. A jovem mulher dedilhou uns grãos para dentro da bebida do carteiro e usou um dedo para enlaçar a mistela. Ao carteiro nem apeteceu perguntar o que eram os grãos. Ela segredou algo ao ouvido. A música tonitruante não deixou entender. Ela repetiu. Queria o carteiro só para ela, só naquela noite.
A cronologia esteve suspensa. O carteiro acordou – e percebeu que a cronologia esteve suspensa. Não sabia que horas eram. Não sabia onde estava. Olhou pela janela entreaberta. A luz do dia começava a desmaiar. Devia estar quase a entardecer. Olhou para o lado contrário, onde estava, ainda sonolenta, a rapariga. Já não era neste dia que regressava a casa. Não estava em condições. Tinha sono e a cabeça não se podia mover nem um milímetro, pois era como se o seu corpo fosse torpedeado por toda a artilharia de um exército. Não se coibiu a uma interiorização máscula antes de se entregar à segunda parte do sono: ainda estava em preparos próprios de combate. E mesmo que não se lembrasse sequer de ter saído do lugar onde os corpos transidos se embebiam nas luzes feéricas da noite, acreditava que tinha sido aprovado com distinção.
Foi o mote para o que sobrava de sono. Adormeceu, outra vez. E deu consigo mergulhado num palimpsesto do seu próprio sonho.  

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