Ryuichi Sakamoto, “Andata”,
in https://www.youtube.com/watch?v=H4USgPPTEx0
Versado na vingança das noites brancas,
o velho olhava para o piano adormecido. O tampo pousado sobre as teclas
escondia a música potencial. Dantes, o velho também fora versado na música. Ensaiou
umas composições, na altura em que julgou ser um tutor da composição musical para
ser levado a sério. O que o velho (na altura ainda homem quase a entrar na
madura idade) não sabia, é que tinha de si uma imagem erradamente maior do que
a sua estatura. A culpa – se é que se podia atribuir culpas – era do espelho
mental que servia de estalão para o velho se aferir.
Ninguém deu conta das partituras geradas.
O velho, desconsolado, fechou-se para o mundo. Num exílio voluntário, sem,
todavia, sair do sítio onde vivia. Fechou-se em casa. Desinteressou-se de tudo.
Deixou de ouvir música. Divorciou-se da música. Essa foi a sua principal
resolução. A música não era capaz de reconhecer os seus préstimos. Ao início,
revoltou-se. Estava certo de o mundo inteiro conspirar contra si. Depois, caiu
em si. Talvez não estivesse capacitado para a composição musical. Continuava
sem entender porquê. Dentro do seu juízo, que considerava de uma objetividade à
prova de qualquer suspeita, terçava as suas partituras em comparação com outras
obras, não as mais conhecidas e que já tinham entrado no panteão da música, mas
de outros autores aspirantes. A sua objetividade invariavelmente fundeava numa
conclusão: não sabia como se podiam considerar melhores as outras partituras.
Durante algum tempo ficou refém do ensimesmar.
Para piorar, a revolta interior era um desassossego constante. Concedeu, algum
tempo depois, quando por fim prescreveu o exílio voluntário e começou a
respirar o ar da rua, que a sua objetividade teria sido contaminada pela subjetividade
de quem está com os sentidos adulterados pela mágoa interior. Num banco do
jardim, com o arvoredo por vizinhança e o chilrear abundante dos pássaros no
proveito da primavera, o velho convenceu-se que não nasceu para ser músico.
Quando entrou em casa, olhou para o
piano. Tinha de se desfazer do piano. Há anos que não abria o tampo do piano. As
teclas do piano tinham desaprendido, certamente. E ele não se considerava músico.
O piano residente na sala era um estorvo. Era como se as quotidianas alvoradas
metessem um punhal fundo na carne sentida do velho, mercê do piano intruso que torturava
os olhos. À primeira proposta de compra, despachou o piano e as alvoradas
passaram a ser luminosas.
Sem comentários:
Enviar um comentário