8.5.17

Correio atrasado (37)


Mac deMarco, “Without Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=1tFjx2jHwIA 
A meio do oceano Atlântico, passageiro de um avião. Sentia-se um vulcão em constante convulsão, expelindo a lava que trazia os sedimentos da sua contrafação. Todo o tempo de ausência havia sido causado por uma rebeldia irrefreável, pelo apelo de se fazer ao mundo porque sentia que o mundo tinha tanto para ser sua interpretação. Havia acordado que a medida do tempo não seria uma parede impossivelmente inclinada e impossível de derrotar, pois passaria a ser o tutor do seu tempo, ditando-lhe o andamento. Percebeu que a fuga era vertida pelo tumulto interior que ditava a necessidade de mudar, de ser aquilo que não soubera ser quando as convenções aceitam os atos tresloucados sem importantes consequências.
Tudo junto era uma convocatória para o nomadismo sem interrupções. Em pleno espírito de contradição de si mesmo, assim que pôde comprou um bilhete de avião para regressar a casa. Um bilhete de avião: desse modo, a viagem consumia a voragem do tempo e não seria aliciado a meio da viagem, caso ela tivesse sido feita em meio menos célere, para um arrependimento que teria o efeito de ditar mais um desvio. Não: desta vez não podia haver contrariedades, nem sobressaltos, nem imponderáveis, nem o desfile de interrogações incessantes a darem origem a novas interrogações. Não podia admitir a procrastinação. Como era possível conciliar este impulso interno e indomável para voltar, o mais depressa possível, para o remanso do lar com as conclusões a que chegara nas semanas anteriores, em sendo tais conclusões a antítese do regresso a casa, era algo para que não encontrava explicação. Desta vez, não queria congeminar o labirinto das elucubrações. Se a convocatória do regresso a casa era o comando imperativo, sobrepondo-se aos demais comandos que lhe eram contraditórios, limitava-se a observar a tensão e a arremeter caminho por aquele dos polos em contradição que se soerguia.
Convém vir atrás no tempo. Na sua quase volta ao mundo, o carteiro encontrou paragem num país onde o idioma oficial era o seu. Foi mais fácil arranjar um emprego – não que noutros lugares dantes demandados tenha sido uma empreitada difícil, pois acabava por encontrar um trabalho sem torcer o nariz quando o trabalho podia ser entendido como pouco digno (nos cânones que eram convencionais quando estava em casa). Dantes, o domínio do inglês andava sempre a descompasso com as necessidades dos lugares. Ora esteve em lugares onde o inglês não era falado (ou falado pobremente pelos poucos indígenas que tinham conhecimento da língua), ou em lugares em que, sendo o inglês o idioma oficial, estava em desvantagem por o seu domínio da língua precisar de aperfeiçoamento. Quando chegou ao Brasil (outra vez, como dantes e sempre, por acaso), a língua deixou de ser embaraço. Com as suas habilitações (acima da média), pôde escolher entre três oportunidades de trabalho que apareceram no mesmo dia. Escolheu a que pagava o salário melhor, apesar de não ser a que mais apetecia. Começou a intuir estava fadado para regressar a casa sem atravessar a demora no painel do tempo, sem mais adiamentos e pretextos para adiamentos. Queria ganhar mais dinheiro para amealhar o suficiente para comprar o bilhete de avião que o trouxesse a casa outra vez. E depressa.
Voltar à fala do idioma materno causou estranheza, ao início. Parecia desabituado. Mas não demorou até ter admitido que era a sua língua. E o conforto que isso trazia! Este conforto trouxe um módico de comodismo que se misturava com medo. Era mais cómodo comunicar com as pessoas numa língua que era a materna. Ao mesmo tempo, a facilidade de comunicação adestrava o receio. Se era mais fácil comunicar, não havia garantias que a comunicação fosse mais fácil. Fosse como fosse, tomou uma resolução: não seria fugitivo à comunicação com os nativos. Tinha de destruir, de uma vez por todas, a timidez entediante que o consumia.
No pouco tempo que esteve no Brasil, tornou-se ator centrípeto do que se prometera, apesar da voz interior continuar a sussurrar que esses devaneios vinham a destempo, que já não estava em idade para tais preparos. Foram tempos intenso, exaustivos. Foram tempos em que o tempo era consumido na haste de vários precipícios. Não tinha tempo para desperdiçar com as improfícuas redes de arrasto onde os pedaços mais pequenos da personalidade eram esquadrinhados. Em boa verdade, já tivera uns lampejos disto em momentos anteriores, durante a viagem. Desta vez foram mais sistemáticos e não precisou de artimanhas para cair na boémia. Sentia-se completo, sem saber o porquê da completude. O que importava era o sentimento que o preenchia. Tirar valor à causa que lhe dava origem era outro salto qualitativo no ser que dera por si como conquista da estadia no Brasil.
Estava preparado para pôr cobro ao exílio voluntário. Já não fazia sentido a fuga de tudo e de todos, a ausência de notícias a angustiar os mais próximos (julgava não estar equivocado). Só havia um apelo a tomar conta do horizonte: voltar a casa. Voltar a casa como homem novo, agora que tinha o orgulho próprio da completude que o preenchia. Evitou amadurecer ideias sobre o que fazer depois de voltar a casa. Só tinha a certeza de não ter certezas sobre nada – a não ser sobre o imperativo de regressar a casa. Nem sequer sabia se ia voltar à profissão, mesmo sabendo que as poupanças estavam exauridas e que tinha de encontrar uma forma de se sustentar. Não pensou, sequer, nas explicações que daria se os mais chegados pedissem justificações para a ausência sem pré-aviso e sem posteriores notícias. Tinha de ser senhor de si mesmo e recusar qualquer explicação nesse sentido. E teria de ser resoluto na negação quando fosse importunado. Seria uma prova dos nove: os mais chegados só deviam celebrar o seu regresso, sem demandarem justificações. Aos que quisessem ouvir porquês do exílio voluntário, o silêncio seria resposta bastante.
O avião começou a mostrar, no fio do horizonte, a silhueta da terra que era a sua. Sentiu em estremecimento. Estranhou. Não podia ser um estremecimento pátrio, pois nunca dera importância às coisas pátrias e execrava o nacionalismo. Tirou tudo a limpo: aquela era mesmo a sua terra. Agora que vinha ungido pelo mundo, queria verter as lições do mundo na sua terra. Talvez fosse esse o seu fado próximo.

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