Hot Chip, “Flutes” (live),
in https://www.youtube.com/watch?v=E4V66UP4aDs
O carteiro tinha acabado de aterrar no
aeroporto da cidade-capital. À espera que a mala desembarcasse, começou a
sentir-se outra vez carteiro. Devia ser dos ares familiares, do país seu; ou
então, era só uma desmedida psicológica, pois nem sequer saíra do aeroporto e
nos aeroportos o ar é sempre igual (e saturado). Podia ser de ouvir o idioma pátrio
falado por muitas pessoas à sua volta, sem o sotaque típico do sítio de onde
viera. Já no avião havia, à sua volta, alguns patrícios. A lembrança do idioma
que conheceu, com o sotaque pátrio a que se habituou, começou no avião. A impressão
de retomar a pose de carteiro terá principiado aí.
Estava a ficar impaciente com a
demora no desembarque da mala. Ouviu dizer, em surdina, um pouco ao longe, que
era dia de greve do pessoal que desembarca as malas e as traz para os tapetes
rolantes onde desfilam perante a avidez dos passageiros que querem todos ser o
primeiro a sair do aeroporto. Não era de admirar. Um aeroporto é um lugar
artificial. As pessoas que visitam a cidade onde acabam de aterrar estão cheias
de pressa para começar a visita. As pessoas que regressam a casa estão cheias
de pressa para regressar a casa, o que não acontece enquanto se demorarem no
aeroporto. E há as pessoas que apenas estão saturadas da viagem de avião e
querem descansar no hotel. Nunca julgou que, com a impaciência geral, os
aeroportos fossem tão vilipendiados pelas pessoas que os frequentam. Até os próprios
trabalhadores, quaisquer que sejam as funções, passeiam-se pelos corredores dos
aeroportos carregando um rosto fechado, como se mostrassem sacrifício por ali
estarem.
Os passageiros amontoavam-se nos vários
tapetes rolantes onde esperavam pelas malas. Elas iam sendo debitadas uma a
uma, espaçadamente, com um vagar exasperante. Começava-se a ouvir um protesto a
ruminar nas várias línguas que o carteiro conseguia entender (e, possivelmente,
nos outros idiomas que escutava à sua volta). À medida que a demora se exagerava,
o carteiro sentiu a impaciência a soltar-se dos limites. Talvez fosse pela
demora em si, pois a viagem que sulcou o mar Atlântico foi demorada e o cansaço
mordia as veias. A impaciência tinha outra origem: estava tomado pela sofreguidão
de sair do aeroporto, queria voltar a respirar o ar pátrio. Como se o ar pátrio
tivesse um perfume inigualável – e estava convencido que sim, que esse era um
predicado exclusivo do ar pátrio. Se, nos tempos anteriores, ainda era
consumido pela tergiversação quanto ao regresso a casa, agora que tinha acabado
de aterrar e suprimia a longa demora não havia nuvens a embaciarem o atestado
que fizera: estava tomado pela impaciência, queria – por partes que se
encadeavam sucessivamente – sair do aeroporto, inspirar longamente o ar pátrio,
apanhar um táxi até à estação de comboios, comprar o bilhete do comboio para a
sua terra, apanhar o comboio (não sem antes, num possível intervalo entre a
compra do bilhete e a chegada do comboio, apreciar o rio de um miradouro contíguo),
sentar-se confortavelmente na carruagem, não cair no sono para consumir todos
os instantes da paisagem atravessada pelo comboio, antes de sair da estação
dirigir-se ao café para recuperar o sabor da gastronomia local e, enfim,
caminhar calmamente até a casa – de preferência, sem ser notado por vivalma
entre a estação e a sua casa.
Mas a mala continuava perdida algures
entre o porão do avião e a zona dos tapetes rolantes que recebem as malas. Da
impaciência medrava o suor que encharcava a camisa e escorria pelo rosto
abaixo. Não queria esperar mais. Que se danasse a mala (“que se danasse” – ainda trazia esta expressão idiomática no
ouvido). Assim como assim, dentro da mala estavam roupas velhas, algumas delas
a ficarem rotas ou tão gastas que só podiam ser destinadas ao lixo. Assim como
assim, o aeroporto era a meta de uma longa demanda, uma vigília exigente pelo
mundo fora. Antes de abandonar o aeroporto, e abandonar a mala à orfandade,
tomou consciência que dera uma volta ao mundo. Só nessa altura é que emendou a
falta de consciência da – por assim dizer – proeza. Sendo o coroar de uma
empreitada que não está à mão de semear da gente comum, não importava fazer de
conta que tinha perdido a mala. Tinha um simbolismo gratificante. Deixada a
peregrinação de si para trás, a mala e o seu conteúdo deviam ser destinados à
destruição. Sentindo-se um homem novo, tudo teria de ser novo. Até a roupa.
Confirmava-se: o odor do ar pátrio
era irrepetível. Delicioso. Inspirou algumas vezes, o mais fundo que conseguiu,
para o atestar. Os gurus dos meandros da alma, os que exalam a generosidade
desarmante de escrever roteiros por onde devem seguir as almas outras sob pena
de interior perdição, diriam que o carteiro estava a ser atraiçoado pelas emoções
que condenavam a epiderme a uma sensibilidade singular. Ele não queria saber
desses gurus para nada, nem dos seus atestados infalíveis. Muito menos naquela
altura, em que regressava ao solo pátrio depois de tão demorada demanda por
terras estranhas.
Não apanhou um táxi. Seguiu a pé, rua
fora, para o centro da cidade-capital. Era hora de ponta, o dia quase no
entardecer. O bulício habitual. O trânsito empanturrado. Pessoas céleres, com
pressa para não perderem o transporte público. Rostos afinal iguais aos rostos
anónimos de todos os lugares que foram fundeados pelo carteiro. As pessoas
seguiam em silêncio. Não falavam umas com as outras, eram estranhas umas às
outras – e até as que pareciam ser conhecidas seguiam imperturbáveis no silêncio
militante. Se não fosse por conhecer a toponímia, as ruas e as avenidas largas,
os edifícios, os monumentos, os dizeres escritos nas placas informativas dos
autocarros e dos elétricos, não diria estar num lugar que era familiar. Podia ser
um lugar qualquer, num lugar distante.
Mudou de planos. Não ia seguir o
encadeamento sucessivo que projetara mentalmente enquanto esperava pela mala. Jantaria
no centro da cidade, à espera que a noite derrotasse o entardecer e as luzes
noturnas emprestassem uma vida diferente à cidade, que esperava pela entrada em
cena de outros atores mais condizentes com a noite. Depois, seria levado pelos
atos espontâneos, pelas convocatórias que viessem à tona no instante, sem
outros planos. Ainda não seria dia de voltar a pisar o chão da terra onde
nasceu.
Não viria grande mal ao mundo se
adiasse o regresso a casa por mais um dia. As evocações recentes – a angústia
de se saber hipotecado nos anos que teriam sido de ouro se não houvessem sido
coutada de um certo hibernar – eram o chamativo supletivo. O amanhã não se
importava de chegar mais tarde. Tinha a certeza disso. Ele era o tutor único do
seu tempo – era bom recordá-lo.
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