9.5.17

Correio atrasado (38)


Hot Chip, “Flutes” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=E4V66UP4aDs    
O carteiro tinha acabado de aterrar no aeroporto da cidade-capital. À espera que a mala desembarcasse, começou a sentir-se outra vez carteiro. Devia ser dos ares familiares, do país seu; ou então, era só uma desmedida psicológica, pois nem sequer saíra do aeroporto e nos aeroportos o ar é sempre igual (e saturado). Podia ser de ouvir o idioma pátrio falado por muitas pessoas à sua volta, sem o sotaque típico do sítio de onde viera. Já no avião havia, à sua volta, alguns patrícios. A lembrança do idioma que conheceu, com o sotaque pátrio a que se habituou, começou no avião. A impressão de retomar a pose de carteiro terá principiado aí.
Estava a ficar impaciente com a demora no desembarque da mala. Ouviu dizer, em surdina, um pouco ao longe, que era dia de greve do pessoal que desembarca as malas e as traz para os tapetes rolantes onde desfilam perante a avidez dos passageiros que querem todos ser o primeiro a sair do aeroporto. Não era de admirar. Um aeroporto é um lugar artificial. As pessoas que visitam a cidade onde acabam de aterrar estão cheias de pressa para começar a visita. As pessoas que regressam a casa estão cheias de pressa para regressar a casa, o que não acontece enquanto se demorarem no aeroporto. E há as pessoas que apenas estão saturadas da viagem de avião e querem descansar no hotel. Nunca julgou que, com a impaciência geral, os aeroportos fossem tão vilipendiados pelas pessoas que os frequentam. Até os próprios trabalhadores, quaisquer que sejam as funções, passeiam-se pelos corredores dos aeroportos carregando um rosto fechado, como se mostrassem sacrifício por ali estarem.
Os passageiros amontoavam-se nos vários tapetes rolantes onde esperavam pelas malas. Elas iam sendo debitadas uma a uma, espaçadamente, com um vagar exasperante. Começava-se a ouvir um protesto a ruminar nas várias línguas que o carteiro conseguia entender (e, possivelmente, nos outros idiomas que escutava à sua volta). À medida que a demora se exagerava, o carteiro sentiu a impaciência a soltar-se dos limites. Talvez fosse pela demora em si, pois a viagem que sulcou o mar Atlântico foi demorada e o cansaço mordia as veias. A impaciência tinha outra origem: estava tomado pela sofreguidão de sair do aeroporto, queria voltar a respirar o ar pátrio. Como se o ar pátrio tivesse um perfume inigualável – e estava convencido que sim, que esse era um predicado exclusivo do ar pátrio. Se, nos tempos anteriores, ainda era consumido pela tergiversação quanto ao regresso a casa, agora que tinha acabado de aterrar e suprimia a longa demora não havia nuvens a embaciarem o atestado que fizera: estava tomado pela impaciência, queria – por partes que se encadeavam sucessivamente – sair do aeroporto, inspirar longamente o ar pátrio, apanhar um táxi até à estação de comboios, comprar o bilhete do comboio para a sua terra, apanhar o comboio (não sem antes, num possível intervalo entre a compra do bilhete e a chegada do comboio, apreciar o rio de um miradouro contíguo), sentar-se confortavelmente na carruagem, não cair no sono para consumir todos os instantes da paisagem atravessada pelo comboio, antes de sair da estação dirigir-se ao café para recuperar o sabor da gastronomia local e, enfim, caminhar calmamente até a casa – de preferência, sem ser notado por vivalma entre a estação e a sua casa.
Mas a mala continuava perdida algures entre o porão do avião e a zona dos tapetes rolantes que recebem as malas. Da impaciência medrava o suor que encharcava a camisa e escorria pelo rosto abaixo. Não queria esperar mais. Que se danasse a mala (“que se danasse” – ainda trazia esta expressão idiomática no ouvido). Assim como assim, dentro da mala estavam roupas velhas, algumas delas a ficarem rotas ou tão gastas que só podiam ser destinadas ao lixo. Assim como assim, o aeroporto era a meta de uma longa demanda, uma vigília exigente pelo mundo fora. Antes de abandonar o aeroporto, e abandonar a mala à orfandade, tomou consciência que dera uma volta ao mundo. Só nessa altura é que emendou a falta de consciência da – por assim dizer – proeza. Sendo o coroar de uma empreitada que não está à mão de semear da gente comum, não importava fazer de conta que tinha perdido a mala. Tinha um simbolismo gratificante. Deixada a peregrinação de si para trás, a mala e o seu conteúdo deviam ser destinados à destruição. Sentindo-se um homem novo, tudo teria de ser novo. Até a roupa.
Confirmava-se: o odor do ar pátrio era irrepetível. Delicioso. Inspirou algumas vezes, o mais fundo que conseguiu, para o atestar. Os gurus dos meandros da alma, os que exalam a generosidade desarmante de escrever roteiros por onde devem seguir as almas outras sob pena de interior perdição, diriam que o carteiro estava a ser atraiçoado pelas emoções que condenavam a epiderme a uma sensibilidade singular. Ele não queria saber desses gurus para nada, nem dos seus atestados infalíveis. Muito menos naquela altura, em que regressava ao solo pátrio depois de tão demorada demanda por terras estranhas.
Não apanhou um táxi. Seguiu a pé, rua fora, para o centro da cidade-capital. Era hora de ponta, o dia quase no entardecer. O bulício habitual. O trânsito empanturrado. Pessoas céleres, com pressa para não perderem o transporte público. Rostos afinal iguais aos rostos anónimos de todos os lugares que foram fundeados pelo carteiro. As pessoas seguiam em silêncio. Não falavam umas com as outras, eram estranhas umas às outras – e até as que pareciam ser conhecidas seguiam imperturbáveis no silêncio militante. Se não fosse por conhecer a toponímia, as ruas e as avenidas largas, os edifícios, os monumentos, os dizeres escritos nas placas informativas dos autocarros e dos elétricos, não diria estar num lugar que era familiar. Podia ser um lugar qualquer, num lugar distante.
Mudou de planos. Não ia seguir o encadeamento sucessivo que projetara mentalmente enquanto esperava pela mala. Jantaria no centro da cidade, à espera que a noite derrotasse o entardecer e as luzes noturnas emprestassem uma vida diferente à cidade, que esperava pela entrada em cena de outros atores mais condizentes com a noite. Depois, seria levado pelos atos espontâneos, pelas convocatórias que viessem à tona no instante, sem outros planos. Ainda não seria dia de voltar a pisar o chão da terra onde nasceu.
Não viria grande mal ao mundo se adiasse o regresso a casa por mais um dia. As evocações recentes – a angústia de se saber hipotecado nos anos que teriam sido de ouro se não houvessem sido coutada de um certo hibernar – eram o chamativo supletivo. O amanhã não se importava de chegar mais tarde. Tinha a certeza disso. Ele era o tutor único do seu tempo – era bom recordá-lo.

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