Cat Power, “Lived in Bars”,
in https://www.youtube.com/watch?v=MVGgGW1ZalY
Correu tudo bem. Contra a apoplexia
constante, correu tudo bem. O motorista do autocarro era diligente. Com a catana,
soube desenhar caminho a tempo até à localidade mais próxima. A oficina ainda
estava aberta quando a expedição chegou à localidade. Contrariando o pessimismo
militante – ou seria apenas desconfiança do método instituído? –, o mecânico
prestou-se, sem demoras, à ajuda necessária antes que fosse tarde. Nem todos
podiam regressar ao sítio onde o autocarro avariara. O reboque do mecânico só
tinha cinco lugares. Ao motorista estava reservado um lugar. Dos restantes oito
homens, quatro não fariam a viagem de regresso até ao autocarro. Tinham de aguardar
que a comitiva chegasse, com o autocarro a reboque ou já reparado.
Os homens olharam uns para os outros.
Não sabiam se queriam lugar no reboque ou se aguardar pelo (incerto) regresso
da comitiva. O carteiro também não estava seguro do menos mau. A viagem no
reboque importava duas horas. Ao que ouviu dizer, por uma estrada tortuosa. E
outro tanto (ou ainda mais, se o autocarro viesse a reboque) até ao lugar em
que se encontrava.
Aquele sítio parecia ter saído de um
filme western de terceira categoria,
com a diferença que os habitantes falavam uma mistura de castelhano com um
dialeto local. O lugar era medonho, sombrio, fétido. As águas dos esgotos
corriam a céu aberto, descendo as ruas não pavimentadas, tornando o ar
pestilento, de tal modo que parecia entranhar-se na pele. Havia lixo por todo o
lado, como se os residentes não soubessem um módico de salubridade, como se não
houvesse sítios próprios para a deposição do lixo. (Olhou com vagar nas imediações
e não encontrou nenhum balde do lixo.) Errantes, os cães vadios, esfaimados na
exta medida da ossatura à mostra, cambaleavam entre os transeuntes, estes
indiferentes aos pobres animais que, apostou, não levaria muito tempo até a
morte os segar. As pessoas passeavam a sua melancolia, fechadas em rostos taciturnos.
Pesava um silêncio de cortar à faca: parecia que as pessoas medravam no seu silêncio
e a pose era tributária da terrível melancolia em que viviam aprisionadas.
Ele perguntou onde podiam aguardar
pelo regresso do autocarro, tomando a iniciativa para ficar. O mecânico (a única
pessoa vivaz da localidade) respondeu, com a agitação que lhe era peculiar, que
havia uma pensão ao cimo da rua. Ele e os demais que não fizessem companhia ao
mecânico e ao motorista podiam esperar na pensão. Que dissessem que iam da sua
parte, antes de, com a anuência do motorista do autocarro (política da
empresa), dar o recado que as despesas corriam por conta dele (seriam
endossadas à empresa de camionagem).
Sem esperar que os parceiros de
expedição se decidissem (pois continuavam sitiados pela indecisão), o carteiro
tomou o caminho da pensão. Estava exausto. Queria matar a sede e descansar as
pernas. E, acima de tudo, descansar a cabeça, depois do sobressalto constante
dos quarenta e cinco minutos de selva desmatada pela catana do motorista, sem
que uma única cobra tivesse aparecido no caminho. “Correu tudo bem”, ciciou outra vez. Até a proposta de proteção dos
deuses em que os nativos acreditam quando estão a meio de uma provação. Não queria
saber se a crendice popular tinha valimento, pois o mais importante estava
conseguido: chegou são e salvo, sem um arranhão, apenas com as pernas
mortificadas pela caminhada espinhosa. Sem se ter assustado com a presença de
cobras, elas ausentes. Não valia a pena adiantar outras interrogações sobre a
crendice dos nativos, sobre a presciência dos deuses em que dizem acreditar. Podia
desencadear um tumulto interior se as interrogações viessem desafiar o seu esteio
agnóstico.
“Correu
tudo bem” – não se cansava de repetir, mentalmente. Sentia que era preciso
desafiar os rudimentos negativos que se abatem sobre si quando um sobressalto
qualquer interrompe a normalidade que era seu bastião. Se parasse para repensar
tudo o que estava para trás e resgatasse das memórias as angústias que turvaram
a respiração e tantas noites de sono ocuparam, tinha de admitir que todos os
presságios de maus finais não foram atendidos. Por vezes, estivera no fio da
navalha – se é que não exagerava no diagnóstico, pois se pensasse noutras
pessoas que estiveram, de facto, no fio da navalha, talvez ele nunca tivesse
sido posto à prova. Mas considerava que sim, que já estivera no fio da navalha,
descontando o possível exagero de diagnóstico. Não era isso que vinha ao caso. O
que importava era lembrar como se saldaram esses presságios de maus finais:
tudo se compôs, com mais ou menos tempo, a preceito. Admitia que esses episódios
faziam lembrar aqueles filmes e séries de televisão que têm sempre bons finais.
Ele devia ser o protótipo de um bom final. Afinal, as coisas encaminhavam-se.
De que se queixava? Às vezes, admitia
que precisava de um sobressalto tremendo, como se de um imenso abalo telúrico
se tratasse, para ser confrontado com uma prova dos nove. De fora, as pessoas,
em pose contemporizadora, podiam aceitar que o repentino abandono a que a
consorte o votou podia ter equivalência com um destes abalos telúricos. Ao início,
assoberbado pela surpresa, assim ajuizou. Foi por poucos dias. Afinal, a chama
tinha-se esgotado já há uns anos. A consorte teve a coragem que ele nunca
tivera. Não podia aceitar que este episódio figurasse no rol dos abalos telúricos
que remexem com os esteios. E não tirava essa conclusão por despeito – para que
ficasse tudo às claras. Voltava ao ponto de partida: talvez estivesse a
precisar de uma provação que tivesse o condão de queimar toda a terra em que os
seus pés assentavam. Para depois cair nas ruínas de si e experimentar a sua
capacidade heurística. Por intermédio deste pensamento, sabia que jogava com o
fogo. Mas não podia insistir na autocondescendência a que se impunha. Ele tinha
comiseração de si mesmo e acabava por admitir que não havia motivos para tal.
O fumo denso que tomava conta do lobby da pensão desajudava. Não era
supersticioso, e talvez isso fosse a sua proteção. De outro modo, convocar o
tal abalo telúrico devastador podia ser o chamamento dos desdeuses para a adversidade, para a adversidade em sentido próprio.
Mesmo não acreditando em superstições, anuiu que não devia ter esta pose lúdica
com a possibilidade de um infortúnio que, no limite, podia ser mortífero. Talvez
fosse do fumo denso do lobby do
hotel. O raciocínio estava embaciado. Não podia ser do cansaço da expedição
involuntária, nem do alívio de não ter deparado com cobras. Aquele fumo denso
tinha um odor singular.
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