1.5.17

Correio atrasado (32)


Julia Holter, “Night Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=Sl3C_eIM_A0    
Não conseguia domar o corpo. Uma inquietação intensa debulhava o sossego. Sentia que o corpo tinha vontade própria. Comandava-o para triunviratos não desejados, para lugares improváveis, para danças imponderáveis, para longas estadias noturnas (ele que nunca fora noctívago), para o desejo sem freio.
Que se lembrasse, o ser não quadrava com um corpo irreverente. Ao contrário: fora o paradigma da rotina, da rotina que admitia adorar (para alvoroço de quem o ouvia em tal confissão, mesmo que estivessem só a simular a contrariedade, pois também seriam servos do marasmo). O cansaço não tinha lugar. O sono era adiado até a noite se render à alvorada e já não haver préstimo para se deitar no sono. O corpo arrebatado movia-se de um lado para o outro, impaciente quando se demorava na infrutífera inércia do mesmo lugar. Era o corpo que pedia a sede de tudo, nem que fosse de meras limalhas das coisas novas que ensinavam os ângulos neófitos que faziam o corpo reaprender-se. Via-se atlético, pose masculina, como acontece com os protótipos de Adónis que se onanizam na contemplação da figura própria à frente de um espelho honesto. Tinha cabimento a ideia, diferente de todas as que tiveram residência pretérita, de que o corpo é a consubstanciação de tudo, desprezando a espiritualidade que olha para as peias interiores e proclama lugares-comuns sobre a antítese entre o exterior e o interior, devotando-se a este último.
Estava perplexo: esta nunca fora a sua zona de conforto. A preguiça indomável obstava ao culto do corpo. Não sabia que praga o tinha contaminado para estar nos preparos da consagração do corpóreo, desvalorizando a sinecura espiritual que, apesar do ateísmo, sempre fora esteio centrípeto. Algo acontecera a apalavrar a mudança, mas já aprendera que era perda de tempo se começasse a eviscerar as funduras do caso à procura de explicações. Aprendera: a lateralidade da demanda era sinónimo de desprezo do mais importante. E, quase de certeza, através da incursão lateral haveria de se perder num labirinto propositadamente talhado para a sua desambição.
Do corpo imparável sobejavam as estrofes arrebatadas, as candeias à procura de luz para saciarem a sua função, um promontório exacerbado na planura da paisagem. Sobrava uma força em que não conseguia ter mão, a força revolvendo-se desde as veias incandescentes e, num acesso febril, contaminando todo o corpo com a voragem do movimento contínuo. Não queria o sono, pois o corpo, em sua contumácia delirante, pedia sempre mais desafios, mais vinho estimável, mais corpos transidos no sargaço do desejo irrefreável. Do desejo: já era datado um desejo assim, tão inverosímil, tão completo, tão sequioso, tão irrefreável.
Lembra-se, ainda antes da fuga se ter imposto como imperativo, que parte da letargia que o tomou por conta provinha do desejo ausente. Quando a consorte o largou de mão, sem pré-aviso (como tinha de ser, concedia), deixou uma curta e lacónica nota escrita, sem grandes justificações para o ocorrido. Em post scriptum, perguntava se ele se lembrava da última vez que os seus corpos se tinham entrelaçado em consagração carnal. E ele não se recordava. Por não se recordar, era sinal que não sentia falta de um desejo que fora metido em hibernação – ou do desejo que, pela fruição da monotonia, deixara de ser mapeado.
Durante a fuga, em momentos de intensa boémia, tão intensa que ao acordar não se recordava do acontecido, tinha vagas recordações de como o desejo fora alimentado pela loucura que era a combustão da boémia. Não jurava a pés juntos, mas tinha uma vaga memória de corpos suados em suas mãos, mas não se lembrava desses corpos, dos seus detalhes, nem das respetivas tutoras. Em lampejos da memória, uns feixes de luz destapavam o pano que embaciava o palco; via-se no papel de ator a contracenar na coreografia ofegante dos corpos unos e nus. Para todos os efeitos, alguma promiscuidade, ou a irreverência dos corpos contra a maré pretérita, não podiam contar para converter o repertório do desejo asfixiado. Pois, nesses casos, a irreverência que viera aos pulsos tinha intermediário na loucura arremessada pela boémia.
Agora tudo parecia diferente. O desejo era adolescente, sem a impostura da inexperiência. Coabitava com um corpo que tremeluzia ao dar como hipótese nem que fosse a contrafação do sexo. O que importava era a coreografia dos corpos enlaçados. Só importava congraçar o epílogo, juntando as peças do tabuleiro para enfeitar o desejo com o sumo ávido dos corpos fremidos. Sem hora nem lugar aprazados, sem saber de cor os limites dos corpos outros, sem sequer ter noção a não ser dos deslimites do seu próprio corpo.
Como interrogação irrecusável, em desvio de intenções que repescava as titubeações de outrora, quis saber se o império do corpo não era apenas exibição de um singular devaneio do pensamento. Tinha de perguntar ao corpo pelo corpo em seu sentido estado. E o corpo reafirmou o seu império, na emérita devastação do pueril lirismo espiritual. O corpo mandava dizer que era tempo de receber nos braços o patrocínio do pragmatismo. Era tempo de levantar todas as alfândegas que dantes quiseram abrir as comportas da castração dos instintos. Só podiam contar as demandas que ao corpo viessem. Todas. Até as mais improváveis e aquelas que dantes eram travadas à custa de preconceitos liminares.
O sobrelevo do corpo seria sinal da nova configuração do tempo. As coisas irremediáveis, por irremediáveis serem, despiam-se do horizonte, destronadas em levantamento impronunciável. Os despojos saíram do dicionário e deixaram de sobressaltar a alma. Agora, e pelo menos enquanto o novo vagar do tempo assim ditasse, o corpo, em sua indemonstrável razão, passara a ser mestre de tudo. Porventura, o carteiro continuaria em atraso na sua indissipável demanda do regresso a casa.

Sem comentários: