Bonobo, “Kerala”, in https://www.youtube.com/watch?v=S0Q4gqBUs7c
O
ardina principal não lia jornais. Achava-os redundantes. Um massacre à língua,
mal escritos. Achava-os obra de gente presunçosa, que se entronizou num poder
que outrora não era seu, só pelo simples ato de poder ter na mão os mandantes.
O
ardina principal era um homem remediado. Nunca teve grandes aspirações. Nunca entendeu
o valor que as pessoas davam aos bens materiais, muito menos a cobiça de quem
matava, se preciso fosse, para amealhar mais um quinhão de abastança. O ardina principal
acreditava em quimeras. Muito do seu dinheiro foi usado para comprar livros. Novos
e em segunda mão. Disfarçava a solidão militante com as páginas e páginas devoradas
nos tempos livres.
Era
a explicação que arranjava para passar grande parte do tempo como se remasse na
estratosfera onde os sonhos não dão por mal empregue o tempo. O ardina
principal não virava o rosto aos desafios da profissão. Se havia tortura que o
afogueava era saber-se despossuído do brio preciso para ser ardina. Decano na
função, não regateava ensinamentos aos mais novos. Os que passaram pelas suas mãos
dispensavam panegíricos. Podiam não gostar das opiniões heterodoxas, ou do
sarcasmo sublime que só os mais preparados eram capazes de reconhecer. Mas nunca
houve ardina treinado pelo ardina principal que não soubesse ser ardina de
corpo inteiro.
Letrado,
contra os vaticínios dos seus clientes e de quem mal o conhecia (pois um ardina
é um ardina e a função sobra para os menos habilitados), não escondia a irritação
quando apareciam pela frente os supinos eruditos, os supostos doutrinadores
através de cátedras (comprovadas, ou apenas ficcionadas debaixo de um verniz
venal). Gente desta, em não conhecendo o ardina, tinha o mau hábito de montar
na pesporrência de quem se julga de superior condição, angariada mercê da erudição
de suas excelências. Na maior parte das vezes, o ardina destinava-lhes a
indiferença. Era de uma generosidade desarmante: os gulosos eruditos debitavam
a suposta sabedoria, à qual o ardina principal fazia ouvidos de mercador quase
sempre, e saíam da banca dos jornais com um ego inflacionado.
Uma
vez, o ardina, em estando em dia não, não se conteve. Um lente coimbrão, do
alto da sua aura à prova de contestação, debitou um qualquer lugar-comum como
se fosse a maior descoberta das ciências. Ato contínuo, tropeçou na gramática –
e para não haver dúvida que não fora distração, repetiu a frase tropeçando no
mesmo erro gramatical. O ardina, em indiscreto esgar de cinismo, citou a
poetisa Adília Lopes: “Estuguemos o
passo. A borrasca vai rebentar a qualquer momento.”
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