Dead Can Dance, “Persephone”,
in https://www.youtube.com/watch?v=Ku1HJ2DI7Xk
A empregada do balcão elogia a
indumentária da mulher que pediu um café. A empregada, respeitosamente, trata a
mulher por você. A mulher, com idade para ser mãe da empregada do balcão,
trata-a por tu. Pode ser da diferença de idades. A empregada do balcão
intromete-se com as razões para tamanho ajanotar: “anda mouro na costa...”, seguido de sorriso malandrim a condizer. A
mulher responde sem demora: “nem penses
nisso. Andei vinte e dois anos a aturar um bêbado. Achas que quero voltar ao
mesmo?!”
Pelo meio do diálogo, enquanto ia alinhavando
a posição de narrador no enredo e tirava as medidas à história, ainda ouvi os
lamentos da mulher e as perguntas da empregada de balcão, que queria seguir o
fio à meada, ao bom jeito do sensacionalismo de uma certa impressa ávida de
sangue (mas não de suor), tendo a mulher dito pelo menos três vezes que não faltou
vontade para matar o bêbado. Nas entrelinhas ficou a noção de violência
conjugal durante os vinte e dois anos.
Causou impressão a mulher ter confessado (se a
honestidade das palavras não lhe falhava) que preferia a solidão a ter de
partilhar a vida com alguém. A solidão compensava o risco do seu contrário. Ficaram
por fechar as cicatrizes dos vinte de dois anos a aturar um bêbado, porventura
com repetidos episódios de violência. A mulher mostrava a imagem de um adágio
popular que preconiza a solidão em detrimento das más companhias. As feridas traumatizaram-na.
Terá fechado o cadeado do amor e deitou as chaves para as profundezas de um mar
distante, com as preces congeminando correntes marítimas a desfavor da
proximidade da chave (não fosse a mesma fundear numa praia qualquer nas
proximidades – numa praia, eventualmente, onde a mulher encontre solário para a
sua pele tisnada).
(Um narrador mais ousado cuidaria de
especular sobre a tentacular teia da solidão da mulher. Cuidaria de atirar a
jogo a antítese entre as palavras proclamadas e os sentidos sufocados na
embocadura da voz, sopesando o desejo reprimido pelas cicatrizes ainda abertas.
O narrador mais atrevido perguntaria se a mulher se reconhece nas cicatrizes da
solidão, ou se ao arrenego de possível companhia não quadra a antinomia dos sentimentos
dissolvidos no silêncio da sua reclusão.)
Tirando o tapete que admite especulações,
o narrador observou como pode ser destrutivo o efeito que uma pessoa produz
noutra. A exposição demorada e os laços duradouros, ao retirarem um módico de
vontade e diluírem a fronteira entre o abuso e dignidade, podem trazer uma
pessoa ao sedentarismo afetivo. Uma enfermidade não reconhecida.
Sem comentários:
Enviar um comentário