26.5.17

Da desconfiança como método


Nick Cave & Shane MacGowan, “What a Wonderful World”, in https://www.youtube.com/watch?v=OtsXjHk2ZsI    
Era do tamanho das contrariedades que escolheram o seu cais como palco. Marejava a indisposição geral na espuma de todos os dias. Não se discernia um sorriso a pintar o rosto. Notava-se um descuido geral – como vestia, como compunha o cabelo, na barba caótica por escanhoar; havia alturas em que se não era fugitivo do banho, parecia.  Era assim que queria que fosse. Não podia ter mão nos freios da confiança. Tinham sido vezes de mais a repousar a confiança no mundo. E o mundo tomou em mãos a resolução de não corresponder. Aprendeu que a ingenuidade é um punhal afiado que desfaz as dúvidas das dores sofridas.
Houve alturas em que ainda perseverou: uma contrariedade era apenas uma contrariedade, isolada do resto, sem ligação que pudesse constituir alicerce para uma teoria geral da conspiração (contra ele). Mas as contrariedades seguiram-se, umas atrás das outras. Talvez as deceções fossem o sinal do embuste de si mesmo. Não se perdoava quando era vítima dessas contrariedades. Elas eram imputadas a atos exteriores à sua vontade, mas não se perdoava. Porque já tivera o vagar de provar o veneno das contrariedades, sabia que a confiança não era credora de uma projeção para fora de si. Foram algumas as vezes. Até que intuiu que não podia continuar a ter a confiança como carnífice.
Os buracos na camisola baça eram o sinal da metódica desconfiança. Sem saber, era como se esses buracos representassem os rombos sofridos, a muita água ácida entrada nas veias à custa dos desencantos estruturais. Agora, sentia-se quase um sociopata. Não queria emparelhamentos com pessoa nenhuma. Nele medrava um princípio geral da desconfiança da restante humanidade. A desconfiança começava em si mesmo. Nunca tinha a certeza dos atos praticados, das palavras ditas, do que ficara por dizer. No imediato instante a seguir ao acontecido, era tomado de assalto por uma vontade interior em que não tinha mão. E essa vontade não demorava a convencê-lo que o ato cometido, as palavras ditas, ou as que ficaram por dizer, eram um erro grotesco.
Tinha de ser rude no trato com os outros. Pois se foram eles (mesmo que não fossem aqueles sobre os quais a rudeza era vertida) os tiranetes da sua inocência abruptamente estilhaçada, não podia ser de outro modo. O tempo limitava-se a ser um extenso deserto. Até que tudo fosse uma memória reservada à biblioteca onde medra a insignificância de cada indivíduo.

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