25.10.17

Lobo faminto

Sigur Rós, “Viðrar vel til loftárása”, in https://www.youtube.com/watch?v=akYuy2FMQk4    
Três quartos de século, um vinho mais antigo, as pipocas com o ribombar vezeiro do cinema, as páginas de um livro amarelecidas pelos dedos untuosos, os mentirosos sem remissão (mas, o que é a verdade?), a chuva teimosamente ausente, imprecações ajuramentadas no fio da cólera sem açaime. E o lobo. O lobo faminto, errante, solitário, noctívago para não coincidir com as pessoas mais dadas à loucura da luz diurna.
O lobo acossado e sempre devolvendo o estigma na caçada implacável, perseverando na intransigência de um papel que não lhe foi destinado (predador) – quando um numeroso séquito dele quer fazer presa. Mesmo durante o sono não deixa de estar de atalaia (metaforizando: como se dormisse com um olho aberto e o outro mergulhado no sono). O lobo faminto desce e sobe as serranias longínquas, trespassa os lugares mais alcantilados, seu refúgio inacessível aos demais. Sabe que a montaria foi organizada em seu nome. Querem a sua carcaça, despir-lhe a pele hirsuta, esquartejar as carnes rijas de atleta das inóspitas montanhas, usar os ossos para amuletos pueris. Querem passear a sua cabeça decepada, ornamentando um varapau perfidamente simbólico, em festança demorada pelas ruas do lugarejo. Querem a celebração de um decesso que é ao mesmo tempo a consagração de um modo de vida, uma antinomia não frugal, um arroto existencial.
O lobo não deixa pontas soltas. Encobre as pistas e dissimula vestígios, pregando partidas aos perseguidores. E, ao longe, solta gargalhadas sonoras, em uivado formato, ao ver a desorientação dos que lhe dão caça. No jogo de desafios, o lobo anda três passos à frente. Não admira que fuja por entre os dedos dos caçadores, quando se dá o raro caso de nele terem observação direta. Fora disso, o lobo faz-se passar como fantasma, um paradoxo que inquieta as brigadas que se revezam na montaria interminável. Não contente com o desnorte das brigadas de caçadores, o lobo parte ao ataque. Semeia armadilhas que apanham caçadores no encalce. Ataca, no pináculo encolerizado, mordendo com a força toda das mandíbulas, não ao ponto de matar: só ao ponto de deixar marcas indeléveis, semeando o medo entre os que foram apanhados no meio de uma distração e vieram aos dentes poderosos do lobo. O lobo sem medo, a não ser das lobotomias antisséticas dos cruzados que vêm em sua demanda.
Um dia terá finitude. Não será numa emboscada preparada pelos caçadores. Será no dia em que, emaciado pela velhice, derrotado pelo cansaço da senescência, se deitar num esconderijo, debaixo de uma rocha inatingível, e deixar o tempo curtir a sua carcaça. Não será derrota – a não ser para os improfícuos caçadores, que nem um vestígio da carcaça do lobo poderão exibir em obscena exultação.

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