Sigur Rós, “Viðrar vel til loftárása”, in https://www.youtube.com/watch?v=akYuy2FMQk4
Três quartos de século, um vinho mais
antigo, as pipocas com o ribombar vezeiro do cinema, as páginas de um livro
amarelecidas pelos dedos untuosos, os mentirosos sem remissão (mas, o que é a
verdade?), a chuva teimosamente ausente, imprecações ajuramentadas no fio da cólera
sem açaime. E o lobo. O lobo faminto, errante, solitário, noctívago para não
coincidir com as pessoas mais dadas à loucura da luz diurna.
O lobo acossado e sempre devolvendo o
estigma na caçada implacável, perseverando na intransigência de um papel que não
lhe foi destinado (predador) – quando um numeroso séquito dele quer fazer
presa. Mesmo durante o sono não deixa de estar de atalaia (metaforizando: como
se dormisse com um olho aberto e o outro mergulhado no sono). O lobo faminto
desce e sobe as serranias longínquas, trespassa os lugares mais alcantilados,
seu refúgio inacessível aos demais. Sabe que a montaria foi organizada em seu
nome. Querem a sua carcaça, despir-lhe a pele hirsuta, esquartejar as carnes
rijas de atleta das inóspitas montanhas, usar os ossos para amuletos pueris. Querem
passear a sua cabeça decepada, ornamentando um varapau perfidamente simbólico,
em festança demorada pelas ruas do lugarejo. Querem a celebração de um decesso
que é ao mesmo tempo a consagração de um modo de vida, uma antinomia não frugal,
um arroto existencial.
O lobo não deixa pontas soltas. Encobre
as pistas e dissimula vestígios, pregando partidas aos perseguidores. E, ao
longe, solta gargalhadas sonoras, em uivado formato, ao ver a desorientação dos
que lhe dão caça. No jogo de desafios, o lobo anda três passos à frente. Não admira
que fuja por entre os dedos dos caçadores, quando se dá o raro caso de nele
terem observação direta. Fora disso, o lobo faz-se passar como fantasma, um
paradoxo que inquieta as brigadas que se revezam na montaria interminável. Não contente
com o desnorte das brigadas de caçadores, o lobo parte ao ataque. Semeia armadilhas
que apanham caçadores no encalce. Ataca, no pináculo encolerizado, mordendo com
a força toda das mandíbulas, não ao ponto de matar: só ao ponto de deixar
marcas indeléveis, semeando o medo entre os que foram apanhados no meio de uma
distração e vieram aos dentes poderosos do lobo. O lobo sem medo, a não ser das
lobotomias antisséticas dos cruzados que vêm em sua demanda.
Um dia terá finitude. Não será numa
emboscada preparada pelos caçadores. Será no dia em que, emaciado pela velhice,
derrotado pelo cansaço da senescência, se deitar num esconderijo, debaixo de
uma rocha inatingível, e deixar o tempo curtir a sua carcaça. Não será derrota –
a não ser para os improfícuos caçadores, que nem um vestígio da carcaça do lobo
poderão exibir em obscena exultação.
Sem comentários:
Enviar um comentário