Ty Segall, “Alta”, in https://www.youtube.com/watch?v=LAWLfJyFiVU
(Cenário: uma
senhora prostrada lamenta o infortúnio depois de ter deixado de ser ministra, imersa
na insídia que resulta da consabida tendência de amesquinhamento deste
anfiteatro que é a cidadania da nação.)
Já não sou respeitada. Ainda mal deixei
o ministério, ainda mal deixei de pulular pelos quatro cantos do país, de
inauguração em inauguração, de parada policial em parada policial, a impor
respeitinho entre as forças de segurança e o povaréu em geral, e sinto a injúria
a abater-se sobre mim. É injusto: fui excelsa enquanto ministra; fui leal como
poucos há (bem sei: na carta de demissão expus o primeiro-ministro, depois de outra
jura de lealdade e de revelar à nação que ele não quis a minha demissão há uns
meses); nem tirei férias, tanta a devoção ao ministério, em particular, e à
causa pública, em geral; e, em registo de humildade (a sério!), admito que não
haja na pátria ninguém mais qualificado para ser ministro da pasta que tutelei.
Estou desolada. Há umas horas, saí de
casa pela primeira vez depois da tomada de posse do meu sucessor (e só Deus
sabe como fui contrariada à cerimónia). Já não senti as vénias deferentes, já não
senti o bafo protetor dos dois cães de fila que faziam a segurança pessoal, já
não passei à frente da fila para o café, já não vi gente a olhar-me com
respeitoso temor (um ministro intimida sempre os que sabem o lugar sagrado do
Estado; e as hierarquias devem ser cautelarmente anotadas), já não vi pessoas
virem ao meu encontro com uma palavra de encorajamento, com um elogio que só
comprova as minhas capacidades e a competência inexcedível. E já não posso
ordenar ao motorista para circular em excesso de velocidade, porque já não
tenho motorista (o saudoso senhor Diamantino, um veterano do ministério).
Fui ao centro comercial – que também tenho
as minhas necessidades mundanas, como o povo – e a lojista fez de conta que não
ouviu quando perguntei o preço do tailleur
e outra fez má cara quando fui pagar. Ao menos, desfaz-se o mito urbano das
empregadas de centros comerciais que não assistem a noticiários de televisão e
não leem jornais de referência. Fui ao centro comercial e, a caminho do automóvel
vi rostos carrancudos na minha direção, como se me quisessem culpar não sei
pelo quê, vi muita indiferença disfarçada em rostos que antes me entreolhavam com
a vénia a preceito e ouvi um velho a dirigir-me impropérios, com vernáculo à
mistura, lesivos da minha honra – o que me fez apressar o passo enquanto encerrava
o queixo no pescoço e descia o chapéu sobre o nariz.
Já não sou respeitada e fiquei
deprimida. Nem sequer me apetece ir de férias. Talvez tenha de provar a cicuta
que sugeri aos concidadãos, quase no estertor da fulgurante passagem pelo
ministério, e me mentalize da resiliência exigível para a nova vida que vem a
mim depois do ministério. Pois que ele há vida além do ministério e eu sou uma
mulher resiliente, mesmo sem ter gozado as merecidas férias. E sei, de fonte
segura, que voltarei a ser ministra.
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