Cat Power, “Cross Bones
Style”, in https://www.youtube.com/watch?v=aW2PcOyAWwM
Era um estivador, um simples estivador.
Sem vida para além da dele, dos pequenos vícios, mergulhado no seu inconsequente
egoísmo, sem ninguém de quem cuidar nem ninguém que dele pudesse cuidar se
houvesse necessidade. Um homem de rotinas. De pouca instrução. Simplório. O que
ninguém sabia, é que este homem era o dono do futuro. Do futuro de todos os
outros homens. Nem ele sabia. Nem desconfiava, sequer. Era um anónimo habitante
do planeta entre milhões de milhões de seres que a ciência julgava iguais pelos
cânones da biologia. Fora-lhe destinado um dom: ditar o futuro de todos os seus
semelhantes. Nisso era dissemelhante de todos os demais.
Ele nunca poderia saber que tinha o dom
nas mãos. Através de uma conjugação de elementos cósmicos, de aturadas equações
e de sofisticados algoritmos – ou de cálculo infinitesimal – o que quer que
fosse: ao homem simplório, modesto trabalhador das docas sem ambições se não
terminar o dia com um par de uísques no bar perto da residencial, um jogo de
futebol de quinze em quinze dias, a sorte na lotaria (confirmando-se que em não
há milagres em casa dos seus fautores: mau grado ser penhor do futuro de todos
os demais, a predestinação não podia ser usada em proveito próprio: nunca
ganhou um centavo em jogos de sorte e de azar), era a pauta caótica que ditava
o andamento do mundo. Um simples gesto seu determinava o porvir de muita gente
de que ele nem imaginava ser gente existente. Se houvesse lugar a metáforas,
dir-se-ia que é como o bater de asas da borboleta que dá origem a uma
tempestade num algures longínquo – mas não é tempo para lugares-comuns.
Podia-se inscrever a seguinte
interrogação no roteiro: seria deus, disfarçado de comum dos mortais,
propositadamente disfarçado da pessoa mais comum que se poderia imaginar – nem um
inatingível poderoso, residente da casta superior; nem o miserável mendigo sem
pergaminhos, desmentindo os marxistas lugares-comuns que a fortuna imaterial se
encontra nos descamisados? O homem que era dono do futuro não sabia: que um
simples gesto seu, sem propósito outro que não fosse a rotina – ou os atos não rotineiros
que, por da rotina se escaparem, também se traduziam em consequências –
determinava um nascimento, um sorriso inatendível, uma frase pungente, um
casamento inesperado (ou um casamento esperado), decisões fadadas ao
arrependimento, o relógio contra a maquilhagem do tempo, uma doença, um beijo
fora do tempo, uma morte sem remissão, um cataclismo sórdido, uma descoberta
para o bornal da ciência, a inspiração para um momento de arte, uma simples
bebida no lobby do hotel e a
companhia que não se dava por esperada – enfim, uma constelação de milhões de
milhões de atos instantâneos, demorados na clepsidra do tempo, deixando atrás
de si o rasto da história. E o caos.
O homem que era dono do futuro morreu
sem saber da sua predestinação. Ainda bem. Nunca é de confiar, a espécie
humana.
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