5.10.17

Crema catalana

The Clash, “Spanish Bombs”, in https://www.youtube.com/watch?v=u-qcy0-7ngw    
Em medievos tempos, quando os povos tinham mais guerra no sangue e não havia a palavra diplomacia no vocabulário, as guerras findavam com armistícios contrafeitos. Habitualmente, uma filha do monarca derrotado era submetida a matrimónio com o descendente da casa real que acabara de sair triunfante no pleito. O armistício quadrava com vingança. E à pobre rapariga não se auscultava a vontade. Tantas vezes estes foram os alicerces de nações saídas de mosaicos, ou forjadas desde diferenças além do razoável, a princesa desposada dando involuntária caução para a união das diferentes partes sob a égide de uma nova, triunfante e doravante nação com selo imperial.
O tempo passava e a linhagem diferente não se diluía na bruma da memória. O esposo, em pose marialva, entoava cânticos que glorificavam uma idílica e, todavia, vã grandeza. O manto da unidade estendia-se sobre as diferentes partes, obnubilando as diferenças que não se queriam diferenças para não hipotecar a grandeza assim proclamada. Do tempo em suas andanças medravam os sedimentos de um antagonismo. Por mais que o esposo, qual macho-alfa a debitar a sua cruzada imperial, émulo de testosterona venal, quisesse simular uma unidade escondendo a sua fictícia têmpera, a princesa, ganhando foros de autonomia e pensamento próprio, montou no cavalo da insubordinação.
O loução dominador não podia tal coisa admitir. Não se questiona a supremacia do macho-alfa – ou ele perde os seus pergaminhos e, de caminho, deixa de ter mão na autoridade. E em tempo algum se podia admitir que a princesa, agora feita mulher madura, saísse da casa comum. A corda foi-se esticando. Começou a ser difícil a comunicação entre os esposos. Com o tempo, a comunicação tornou-se impossível. A princesa, sentindo-se amordaçada, revoltando-se contra os resíduos da história que avivavam como sua vontade foi violentada, subiu ao mesmo pedestal onde, sobranceiro, habitava o consorte. Houve um dia em que ela se despojou dos últimos resíduos de medo e olhou o consorte, olhos nos olhos. Informou sobre o seu desejo de sair de casa. Não se sentia em casa, nem aquela casa fora sua pertença.
O dominador suserano abespinhou-se. Tal desiderato não podia admitir. A casa era um todo, indestrutível, à prova de separação. Ela era parte da casa. Quisesse ou não. Era o que mais faltava que a vontade sua, em notória minoria, fosse carta de alforria que ultrajava a vontade do suserano (e de quem ele tutelava). O suserano tinha de tomar as rédeas entre mãos. Atropelando (outra vez) a vontade da princesa que, contra a sua vontade, fora atirada para dentro daquela casa. Aprisionou a princesa em masmorras ermas, para a calar e asfixiar os vestígios da sua vontade contraditada. Não contou com a audácia e a obstinação da princesa.
O suserano devia saber que não se pode manter ninguém em casa contra sua vontade.

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