The Clash, “Spanish Bombs”,
in https://www.youtube.com/watch?v=u-qcy0-7ngw
Em medievos tempos, quando os povos
tinham mais guerra no sangue e não havia a palavra diplomacia no vocabulário,
as guerras findavam com armistícios contrafeitos. Habitualmente, uma filha do
monarca derrotado era submetida a matrimónio com o descendente da casa real que
acabara de sair triunfante no pleito. O armistício quadrava com vingança. E à pobre
rapariga não se auscultava a vontade. Tantas vezes estes foram os alicerces de
nações saídas de mosaicos, ou forjadas desde diferenças além do razoável, a princesa
desposada dando involuntária caução para a união das diferentes partes sob a égide
de uma nova, triunfante e doravante nação com selo imperial.
O tempo passava e a linhagem diferente
não se diluía na bruma da memória. O esposo, em pose marialva, entoava cânticos
que glorificavam uma idílica e, todavia, vã grandeza. O manto da unidade estendia-se
sobre as diferentes partes, obnubilando as diferenças que não se queriam
diferenças para não hipotecar a grandeza assim proclamada. Do tempo em suas
andanças medravam os sedimentos de um antagonismo. Por mais que o esposo, qual
macho-alfa a debitar a sua cruzada imperial, émulo de testosterona venal,
quisesse simular uma unidade escondendo a sua fictícia têmpera, a princesa,
ganhando foros de autonomia e pensamento próprio, montou no cavalo da
insubordinação.
O loução dominador não podia tal coisa
admitir. Não se questiona a supremacia do macho-alfa – ou ele perde os seus pergaminhos
e, de caminho, deixa de ter mão na autoridade. E em tempo algum se podia
admitir que a princesa, agora feita mulher madura, saísse da casa comum. A corda
foi-se esticando. Começou a ser difícil a comunicação entre os esposos. Com o
tempo, a comunicação tornou-se impossível. A princesa, sentindo-se amordaçada,
revoltando-se contra os resíduos da história que avivavam como sua vontade foi
violentada, subiu ao mesmo pedestal onde, sobranceiro, habitava o consorte. Houve
um dia em que ela se despojou dos últimos resíduos de medo e olhou o consorte,
olhos nos olhos. Informou sobre o seu desejo de sair de casa. Não se sentia em
casa, nem aquela casa fora sua pertença.
O dominador suserano abespinhou-se. Tal
desiderato não podia admitir. A casa era um todo, indestrutível, à prova de separação.
Ela era parte da casa. Quisesse ou não. Era o que mais faltava que a vontade
sua, em notória minoria, fosse carta de alforria que ultrajava a vontade do
suserano (e de quem ele tutelava). O suserano tinha de tomar as rédeas entre mãos.
Atropelando (outra vez) a vontade da princesa que, contra a sua vontade, fora
atirada para dentro daquela casa. Aprisionou a princesa em masmorras ermas,
para a calar e asfixiar os vestígios da sua vontade contraditada. Não contou
com a audácia e a obstinação da princesa.
O suserano devia saber que não se pode
manter ninguém em casa contra sua vontade.
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