Nick Cave & the Bad
Seeds, “Higgs Bosom Blues” (live at Austin City Limits), in https://www.youtube.com/watch?v=S-XaFi6tWck
Na ponta de um remo, a água que desliza
depois de ser furtada ao seu leito. Vemos as leves gotas de água que se
desprendem do remo e se agarram ao maternal manancial de onde vieram. Da origem
que se não abandona. Por mais demenciais os dias passados em oblívio; é inesgotável
a fonte matricial, irrecusável.
Dir-se-ia: as gotas furtivas, as gotas
que não querem aderência aos remos intrusos, são como lágrimas derramadas de
olhos cansados. Os olhos que se fixam na embocadura do remo à espera que as
gotas frutadas, as gotas levantadas pelo movimento repetitivo dos remos, subam
ao rosto recetivo de quem rema. Lutos assim encenados são imprestáveis. A banal
roda da vida, em seus interstícios pontuada por uma amálgama de amargura e de esperança
em volteios de qualquer coisa que se pareça com “justiça divina”, tratará de
repor as coisas no lugar a que pertencem. A seu tempo – em seu devido tempo. Qualquer
luto vem a destempo.
Sobra-nos o intenso sabor das frutas
que levamos à boca, a sumarenta seiva que esprememos e que nos confere esteio. Não,
não levamos o corpo aos contrafortes de um luto, pois os lutos são fracassadas
tentativas de resgatar o pretérito que foi anterior ao motivo do luto. Não podemos
ser arquitetos de impossíveis, para não corrermos o risco de tornar o porvir
num espaço cinzelado por uma plúmbea, melancólica tonalidade – para não
deixarmos nos braços da impossibilidade o frondoso império de que fomos
construtores.
Damo-nos à chuva tardia e esperamos que
o rosto molhado limpe as lágrimas estonadas. Atiramos o corpo à maré
destemperada dos mares que são o leito por onde navegamos. Não paramos. Não paramos
– e essa é a garantia que extraímos ao mais fundo do mar, da sua intensa
salinidade não estéril. E provamos do neófito que nos congrace o olhar, metendo
o dorso incansável pelas vielas estreitas de uma cidade medieval, pelos campos
infinitos de uma estepe, pelos montes alcantilados de serranias a perder de
vista, pelas cidades cosmopolitas que se embebem numa fusão de moderno e
ancestral, nas artes de variada espécie, nas palavras desalfandegadas pelos
sentidos, ou nos sentidos aprumados que, de tão insurgentes, dispensam
palavras.
Para no fim podermos dizer, com a
vaidade que julgarmos ostentação, que continuamos fieis depositários da
singularidade que fizemos nossa, à margem de lutos, à margem de alfaiates
suspeitos de detração, de nós sendo o apascentar dos campos por onde cresce a
fertilidade do que somos.
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