17.10.17

Sempre somos o que não julgamos (ou: a antítese de um luto)

Nick Cave & the Bad Seeds, “Higgs Bosom Blues” (live at Austin City Limits), in https://www.youtube.com/watch?v=S-XaFi6tWck    
Na ponta de um remo, a água que desliza depois de ser furtada ao seu leito. Vemos as leves gotas de água que se desprendem do remo e se agarram ao maternal manancial de onde vieram. Da origem que se não abandona. Por mais demenciais os dias passados em oblívio; é inesgotável a fonte matricial, irrecusável.
Dir-se-ia: as gotas furtivas, as gotas que não querem aderência aos remos intrusos, são como lágrimas derramadas de olhos cansados. Os olhos que se fixam na embocadura do remo à espera que as gotas frutadas, as gotas levantadas pelo movimento repetitivo dos remos, subam ao rosto recetivo de quem rema. Lutos assim encenados são imprestáveis. A banal roda da vida, em seus interstícios pontuada por uma amálgama de amargura e de esperança em volteios de qualquer coisa que se pareça com “justiça divina”, tratará de repor as coisas no lugar a que pertencem. A seu tempo – em seu devido tempo. Qualquer luto vem a destempo.
Sobra-nos o intenso sabor das frutas que levamos à boca, a sumarenta seiva que esprememos e que nos confere esteio. Não, não levamos o corpo aos contrafortes de um luto, pois os lutos são fracassadas tentativas de resgatar o pretérito que foi anterior ao motivo do luto. Não podemos ser arquitetos de impossíveis, para não corrermos o risco de tornar o porvir num espaço cinzelado por uma plúmbea, melancólica tonalidade – para não deixarmos nos braços da impossibilidade o frondoso império de que fomos construtores.
Damo-nos à chuva tardia e esperamos que o rosto molhado limpe as lágrimas estonadas. Atiramos o corpo à maré destemperada dos mares que são o leito por onde navegamos. Não paramos. Não paramos – e essa é a garantia que extraímos ao mais fundo do mar, da sua intensa salinidade não estéril. E provamos do neófito que nos congrace o olhar, metendo o dorso incansável pelas vielas estreitas de uma cidade medieval, pelos campos infinitos de uma estepe, pelos montes alcantilados de serranias a perder de vista, pelas cidades cosmopolitas que se embebem numa fusão de moderno e ancestral, nas artes de variada espécie, nas palavras desalfandegadas pelos sentidos, ou nos sentidos aprumados que, de tão insurgentes, dispensam palavras.
Para no fim podermos dizer, com a vaidade que julgarmos ostentação, que continuamos fieis depositários da singularidade que fizemos nossa, à margem de lutos, à margem de alfaiates suspeitos de detração, de nós sendo o apascentar dos campos por onde cresce a fertilidade do que somos.

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