19.10.17

Os homens dos guarda-chuvas sempre abertos

Protomartyr, “Night-Blooming Cereus”, in https://www.youtube.com/watch?v=uDCZYqeNECk    
Imóveis, dentro de fontes torrenciais, a água pelos joelhos, dentro de seus fatos pretos como se houvesse neles um luto por celebrar, os homens envergando guarda-chuvas sempre abertos, estivesse sol ou fizesse chuva. Os transeuntes, ao início, perplexos diante dos homens dos guarda-chuvas sempre abertos, lançando a si mesmos interrogações sobre os fins do ato circense. Depois, enraizou-se nos costumes da cidade. Só os forasteiros mandavam o tempo parar (ou as empreitadas que tinham em mente) para apreciarem o bando dos homens dos guarda-chuvas sempre abertos, que andavam de lugar em lugar, ora os mais turísticos, ora os lúgubres, perdidos entre vielas corridas nas profundezas da cidade.
Às vezes, deambulavam demoradamente pelas ruas, indiferentes ao burburinho e à agitação das horas de ponta, indiferentes aos olhares de alcovitice ainda atirados na sua direção, sempre impassíveis, sempre embebidos num silêncio sepulcral. Em momentos ao acaso, suspendiam a marcha e encenavam o que se poderia chamar coreografia, não fosse dar-se o caso de os passos encenados serem aleatórios, desorganizados, caóticos – e, mesmo assim, coreografia. Aos mais indiscretos que do bando se acercavam, continuavam a dispensar total indiferença. Pareciam ter saído de um laboratório, cobaias de qualquer experiência, autómatos, e por dentro da cidade habilitados à sociopata condição de não interagirem com alguém. Pelo contrário: à proximidade genuína (não a fermentada na mera chacota), os homens dos guarda-chuvas sempre abertos manifestavam estranheza, um certo incómodo quando sentiam os corpos de outras pessoas perto de mais, como se houvesse uma fronteira que delimitava um espaço de segurança que os excluía do contacto físico.
Um dia, foi o dia da exceção. Um jovem com ar lunático, rivalizando com os homens dos guarda-chuvas sempre abertos no que à aberrante condição exteriorizada dizia respeito, um jovem talvez filósofo amador, insistiu nas perguntas. E tanto insistiu que um dos homens do bando, enquanto segurava a mão da estátua da república no cimo da escadaria do parlamento, confessou, inquirido sobre o porquê dos perenes guarda-chuvas abertos:
- Os guarda-chuvas sempre abertos servem para nos protegermos. Da chuva, quando chove. Do sol, quando o dia é insuportavelmente soalheiro. Dos impropérios constantes, bolçados por esta sociedade velhaca. Da frivolidade, dos olhares sempre iguais diante das mesmas coisas que os desafiam. Da ignomínia – da alheia e da própria, que não somos anjos. E para que as pessoas pressintam, através da nossa instalação artística, que temos de ser como casulos. Quantas vezes, até, casulos contra nós mesmos.

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