3.7.18

As mãos atadas


The Clash, “Death or Glory”, in https://www.youtube.com/watch?v=YcOpZhQ7MEM
Num minuto se embaraçam as mãos com a fuligem do tempo. Puídas, é como se estivessem atadas e o mastro que as submete fosse um alicerce inamovível que nenhuma força humana consegue demover. As mãos assim atadas não querem muito. Mergulham na resignação, contentam-se com migalhas; sabem que já não vão a tempo de uma plástica reconfiguração que as despoje das rugas fundas que as adulteraram (no sentido da sua feição original).
(Em todo o caso, pode-se perguntar o que é a feição original de umas mãos: uma certa morada no tempo, por nós enquistada como o selo fulcral da originalidade das mãos? Mesmo que assim se oblitere o mapa das mãos que é precedente? Por que não pode o feitio original de umas mãos corresponder à pele frágil e pueril de um recém-nascido? Há algum mandamento que invalide a hipótese de as mãos envelhecidas e corroídas por rugas profundas ser a forma original de umas mãos? Porventura, não tem sentido atribuir um retrato das mãos que corresponda à sua original configuração. Pois as mãos passam pelo tempo e são por ele modificadas. Seria exagerado confirmar que as mãos se adulteram à mercê da ação implacável do tempo.) 
Não se conclua que as mãos perecem sob influência da erosão dos elementos e do tempo que não se comisera das pessoas. A aridez que desfaz a lisura das mãos simboliza uma vitória sobre o tempo: pois há quem não consiga dobrar um certo cabo temporal sem que as mãos alguma vez cheguem a ficar atadas ao mastro da desrazão que verte, sobre a memória futura, a iniquidade do tempo. As mãos só ficam presas se essa for a vontade dos seus tutores. Se eles capitularem, no dobrão de quem desiste de continuar a usar as forças para fazer coro com a maré, ou delas se serve para ripostar na direção oposta (se esse for a mensagem soerguida de uma erupção interior). Podem estar gastas as mãos – é a ação inexorável de um elemento que não resiste à inação, num movimento contínuo que tem o seu próprio desgaste. Mesmo que as mãos acabem por cair na imobilidade irrecusável, a lucidez ensina que não é capitulação; é apenas um cortejo que não tolera paragens, e as mãos que se gastam acabam acantonadas na letargia.
A apatia não é necessariamente sinónimo da vontade decadente. Às vezes, para preservar a epiderme gasta das mãos, mais vale que as deixemos atadas a um qualquer mastro. Que assim se torna mastro protetor.

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