4.7.18

Às respostas que recusam o óbvio


Dead Can Dance, “Children of the Sun” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=gw0I12BHZ6I
O povo insiste: há sempre um testo para uma panela. Da mesma maneira que se albergam, no azulejo kitschdo lugar-comum (onde coabita o “saber popular”), determinadas palavras que vêm mesmo a calhar para coroar uma certa expressão. Hoje de manhã, a letra de uma música evocava “sapos”, deixando o ouvinte adivinhar que na estrofe seguinte viria a palavra “engolir”. 
As improváveis combinações é que merecem crédito. É como perguntar: “a que horas chega a noite?” e responder “pelo desaguar do rio, prevê-se que a lua esteja à espera de autorização para entrar no quarto minguante.” Ou perguntar, com a solenidade vetusta dos que não abdicam de pose séria (como se fossem estadistas, ou aspirantes a sê-lo, pelo menos nos seus sonhos), “qual é a relevância do assunto para os destinos da nação?”, ouvindo um interlocutor asseverar que “a dimensão oculta do labirinto pede meças à arbitrariedade das escolhas, daquelas escolhas que não se sopesam e apenas se costuram na artificial espontaneidade do instante em que são tomadas.
Podem-me perguntar: “que podias dizer de ti que fosse abonável?”. Responderia: “da última vez que olhei para o Borda d’Água, estava lá escrito que é às vinte e uma horas e onze minutos.” Talvez confuso, o interlocutor seria tentado a arranhar outra interrogação: “confias nas tágides estatutárias, na lei de bronze que delas se infere, se os Homens são peritos em desautorizar as leis que eles próprios confecionam?” Ou então, numa reviravolta temática, ouvir a perguntar: “sabes de alguma correlação entre as marés do rio e a fase da lua?
Naquelas hipóteses, as respostas não são inteiramente avulsas e aleatórias. Elas só não correspondem diretamente ao perguntado. Mas encontra-se correspondência desfasada entre cada resposta e cada pergunta. É quase como se o respondente, pessoa conhecida pela sua rebeldia, escolhesse a página do tempo em que desembaraça resposta a uma interrogação que é sempre pretérita. Pense-se numa hipótese original: as respostas a precederem as perguntas. Ou seja: perante a resposta, o interlocutor adivinha a pergunta que nela se encaixa. Algo de parecido com o seguinte exercício:
Resposta #1: “toda a condição humana supõe a inverosimilhança das raças.”
Resposta #2: “perante uma encruzilhada, tomo partido pela estrada que se oferecer estética.”
Resposta #3: “já fui ao hemisfério sul e trouxe um caldo de cultura tropical; logo eu que, dantes, não oferecia um vintém por essas culturas.”
O interlocutor, colocando perante o desafio, teria de esboçar três interrogações, sem à partida as numerar (a correspondência numérica entre interrogações e respostas será o lugar para o exercício seguinte):
“Dos quatro caminhos sobrepostos, pode-se afirmar, em depuração da lente, que a vontade sabe escolher o que lhe é bondoso?”
“A cultura, por mais heterogénea e versátil, é um património único. Adianta terçar argumentos se o húmus é influenciado por considerações relacionadas com o lugar, o clima, a identidade forjada, a densa teia de encadeamentos herdados das gerações anteriores?”
“Acreditas que somos todos párias das pátrias que nos agrilhoam um pedaço importante da identidade individual?”
Os dois interlocutores reunir-se-iam para anuírem na correspondência entre interrogações e respostas. Dando o seguinte por assente: a terceira pergunta corresponde à resposta #1; a primeira pergunta corresponde à resposta #2; e a segunda pergunta encaixa-se na resposta #3.  

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