10.7.18

E no fim colocas o título


Radiohead, “All I Need” (live from the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=Z9IODJdi3GA
Estás à frente da folha em branco. Não sabes ao que vens. Não sabes que título vais somar ao ensaio que ainda nem tem baias por onde se mover. Fruto desta escravidão (que ainda consideras salutar), a folha continua em branco, à espera de uma módica ideia. (Está visto que hoje o aluvião de ideias ficou para memória futura.) Julgas que uma combinação de frutos pode desencravar o verbo e o substantivo. 
(Hoje prometeste ser frugal nos advérbios, admitindo que quase sempre apenas servem para encher a mancha do texto; também prometeste evitar adjetivação, que é a gordura má que retira simplicidade aos textos.)
Uma combinação de frutos: escolhida de acordo com um critério avulso, ou selecionados os frutos com critério? Não será através dos frutos que o mote terá aval. Podias olhar para a atualidade – e a atualidade é tão pródiga em acontecimentos, numa mistura de acontecimentos risíveis e de acontecimentos que contam a sério. Recusas. Não estás seguro de um critério fino para distinguir os acontecimentos risíveis dos acontecimentos que contam a sério. Por outro lado, na fase dominante, viras o rosto à atualidade. Deixas para o comentário dos entendidos, dos que se presumem entendidos e dos outros, que não abdicam da pose séria e se consideram legítimos para perorar sobre a atualidade. Não fazes falta à atualidade, nem ao comício constante que ela provoca.
Com isto não reconheces que tens de olhar para as outras dimensões do tempo – ou para um qualquer tempo alternativo que esteja escondido do olhar comum. Já sabes, e tens admitido a eito, que a escravidão que te consome é o tempo – a tua dependência em relação a ele. Nestes termos, deixas de lado as clepsidras, as diferentes camadas do tempo, ignoras o tempo pretérito (porque as recriminações ou as recordações cheias de húmus são irrelevantes para o porvir) e também deixas que o futuro se transfigure no presente que depressa se liquefaz na efemeridade.
Continuas de mãos atadas. Pensativo. Recorres à música: pode resultar num súbito fogacho de inspiração, uma qualquer combinação de palavras evocativa de um espelho onde se refletem as margens de um texto, ou apenas uma palavra simples, poderosa ao ponto de se transformar no mote que o texto (até então órfão) estava à espera. A música, em escolha aleatória, não foi grande ajuda. Continuas a ver a folha em branco à frente dos olhos. E os olhos sitiados pelo silêncio das ideias, que continuam sem sussurrar a inspiração que o texto convoca. 
Depois de alguns esboços, depressa os abjuras. Não gostas do início e não queres saber por que avenida poderia seguir um texto mal nascido. A páginas tantas, a página deixou o seu estado virginal. Um amontoado de palavras desfila página abaixo. Não é bem uma ideia, ou um argumento solidamente ancorado num esteio. Não é nada tangível. É apenas uma coleção estilística que admite a deslealdade dos corredores do pensamento, hoje autênticos opositores das ideias, deixando-as desertas. Não admira que nem sequer saibas o título a encimar o texto, se nem do texto consegues retirar um fio condutor.
Ninguém disse, contudo, que a coerência era um imperativo quotidiano. Amanhã é outro dia.

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