25.7.18

Sobre o bolor (ou: os sentidos adulterados)


Iggy Pop, “Et si tu n’existais pas”, in https://www.youtube.com/watch?v=BdkeG46BGDw
Os sentidos não são viáveis” – reclamava com convicção, demonstrando que há uma espessura escondida ao olhar mais desatento, o olhar que emerge da mera espuma dos dias. “Aos sentidos oculta-se a densidade que só é possível quando eles conseguem decapar o verniz à superfície, sondando as camadas mais profundas onde se situa a essência que os sentidos devem capturar” – prosseguiu, em elaboração do raciocínio perante a interrogação que a desafiou a explorar o significado da primeira asserção.
Do outro lado, estava alguém que parecia pertencer à multidão que se satisfaz com a visão superficial acantonada nos sentidos não exigentes. Parecia perplexo, sem perceber a proclamação e a sua explicação. Pediu exemplos, para perceber onde ela queria chegar com aquele raciocínio. “Lembra-te dos queijos. Ele há queijos embebidos em bolor e não é por terem bolor que estão estragados. Pelo contrário. Antes de terem bolor não estão prontos para o consumo. É o bolor que os transfigura, que lhes traz a natureza de queijo daquela espécie. Se não soubesses que estes queijos devem ser comidos quando se apresentam raiados de bolor, dirias que estavam estragados. Porque sabes que o bolor sinaliza uma perda de validade. O que está adulterado não é o queijo; são os sentidos que atribuem ao bolor uma má conotação. A menos que os sentidos sejam treinados e se convençam que um bolor nestas circunstâncias significa o contrário daquilo para que os sentidos estão preparados.
Do outro lado, a ideia começava a fazer sentido. Não era, afinal, tão limitado na hermenêutica dos factos como parecia no início da conversa. Sossegava-se, até porque não era confortável a sensação, que herdara do começo da conversa, de pertencer à imensa casta dos frívolos, dos que, sem saberem, eram vítimas da superficialidade dos sentidos. Começou a fazer sentido. E a juntar um punhado de exemplos que confirmavam a adulteração dos sentidos quando sucumbem ao engodo da primeira impressão: o vinho feito de uvas em véspera da podridão; a literatura proscrita por ser considerada um atentando às convenções (e, mais tarde, recuperada para o panteão das letras e devidamente imortalizada); as trufas retiradas ao subsolo pelo faro diligente do nariz de porcos; a generalidade dos queijos, só possíveis depois de o coalho estragar o leite; os grãos de uma colheita específica de café que medram em dejetos de macacos; a música ininteligível à primeira impressão e que só depois de várias audições revela as camadas escondidas e a sua genialidade – o que exige a predisposição para as sucessivas audições; a incógnita sobre pessoas mal conhecidas (quantas pessoas não devidamente conhecidas teriam tanto de louvável a mostrar se fossem devidamente conhecidas?); um lugar a que ficou pespegado o rótulo de feio, por o estado de alma não se ter adestrado para a devida apreciação do lugar.
Ao rol de exemplos, que definitivamente o extraía de um lugar a que só pertencem os boçais da indiferença, ela juntou outro: “e há aqueles homens que são feios, para os cânones da subjetiva beleza, mas que possuem um charme que é difícil de explicar. Um encantamento sortílego, como se houvesse um íman que despoja as mulheres de sentidos. Numa, talvez, genuína adulteração dos sentidos. Em todos os sentidos.

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