27.11.18

As freirinhas que vestiam viuvez mal se punha o outono


Unknown Mortal Orchestra, “Hunneybee”, in https://www.youtube.com/watch?v=IJrKlSkxRHA
No verão, as freirinhas que fazem o percurso entre o convento e um lugar qualquer, estando de regresso meia hora depois, envergam hábitos de branca fazenda. Parecem de linho, o muito fino pano a escondê-las dos dias soalheiros e não insuportavelmente tórridos, pois o clima é temperado. 
Mal entra o outono e as temperaturas cercam a dúzia de graus centígrados, é vê-las a passear num hábito negro, pesado, talvez de fazenda dura e cardada, protegendo-as contra os achaques habituais (sem ter a ver com o hábito que envergam) quando as tempestades outonais apanham as pessoas desprevenidas (ou ainda habituadas ao ameno outono, que às vezes mais parece um verão tardio). E se os hábitos veranegos parecem de uma leveza que se opõe aos dias pesados de canícula, tamanha a fina fazenda de que são feitos, os hábitos que rimam com o outono parecem puídos, como se as freirinhas tivessem passado mais tempo no outono e no inverno do que no verão. 
Em compensação, a mudança radical de cor parece não se conformar com a reclusão monástica das freirinhas. Pode ser verdade que o recolhimento, com o farto cortejo de privações, seja uma medida de radicalidade; mas, fora disso, o hábito monástico não quadra com exageros. Tal mudança, como do dia para a noite, operava-se na alteração do guarda-roupa a preceito com as exigências das estações. Pior: a viuvez que passavam a envergar, quando o clima mudava de rosto e se cintava aos plúmbeos dias, pondo carantonhas que eram a fotografia fidedigna desses dias sombrios, essa viuvez parecia um protesto contra a saudade do verão. 
As freirinhas tomavam partido. Não é que seja novidade, pois a filiação espiritual obriga-as a tomar partido dos dogmas e a abdicar de tudo o que os dogmas postulam como proibido. Não deixava de ser surpresa a escolha de um dos lados da barricada: as freirinhas estavam ao lado da imensa maioria que, às primeiras “contrariedades” climáticas – e assim se apodam, pois a chuva e o vento parecem, para os saudosistas do verão, um atentado à natureza – protestam ruidosamente contra a chuva, o vento, o frio, e encarnam personagens sorumbáticas que emparelham com a melancolia que atribuem ao tempo outonal e depois invernal. 
Era uma injustiça. Alguém podia dizer às freirinhas que, no papel de servas de deus e, por conseguinte, mensageiras de boas e esperançosas novas, elas deviam ostentar hábitos de uma alvura imaculadamente noiva, até durante o outono e o inverno. Até porque a alvura é a metáfora da pureza a que são adstringidas e o negrume ressoa a algo demoníaco, com as trevas impróprias para a pureza delas esperada. 

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