Orelha Negra ft. Orlando Santos, “Since You’ve Been Gone/A Memória”, in https://www.youtube.com/watch?v=nFS4GonXg64
Do umbigo do crepúsculo não deixo de ver as pontes. Sei-as preparadas, chão constantemente pisado, um oráculo que se deixa contaminar pela sede de avenças. Também pode ser o contrário: as pontes põem em contacto os desavindos. Até nisso são generosas, as pontes. Em vez de os diferentes se acantonarem em seus redutos, ajuizando impossível a discussão, as pontes estendem tapetes para os diferentes saberem das suas diferenças. Não se intui que as pontes sejam parciais. Não tomam partido na contenda. Limitam-se a servir de palco que aproxima os diferentes, convocando a equacionarem as diferenças sem que nenhum deles parta com a sede do vencimento de causa. Tudo o que se quer é que os diferentes saibam de que matéria são feitos os de si diferentes. Da mesma forma que as pontes amansam os rios acelerados que sob elas correm em caudais tumultuosos, também temperam as febres desaustinadas dos irremediáveis discursantes de ideias feitas. Não fossem as pontes, os diferentes continuavam a bordejar margens diferentes. Não seria possível ouvirem-se um ao outro. Talvez apenas processassem os esteios onde medram as suas ideias. As pontes desfazem os dogmas; ou, pelo menos, fornecem matéria-prima para esbater os dogmas: quando os diferentes partem no pressuposto de ouvir quem deles difere, sem estarem aprisionados às bainhas bolorentas de um dogma, subtraem-se ao enquistamento malsão e podem tirar partido do que dizem os diferentes. Não consideram as pontes a hipótese de, desfeitas as divergências, tudo se resumir a um único pensamento, monolítico, castrador, terrivelmente único. Quando os diferentes são cotejados, e quando se apresentam no desembaraço das ideias desempoeiradas, multiplicam-se as diferenças. É muito provável que alguns semelhantes se tornem diferentes. Tudo se torna mais rico. É preferível que haja muitos e diversos pensares do que meia dúzia deles acantonado a matrizes rígidas, ao vurmo dos preceitos que não admitem contestação. Por isso se deseja sempre mais pontes edificadas. Mais passagens entre margens separadas pela geografia. As pontes deviam ser todas património imaterial da humanidade.
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