2.11.18

Autocrítica (short stories #59)


Badbadnotgood & Little Dragon, “Tried”, in https://www.youtube.com/watch?v=EyX1RZMPpNA
          Dos cálculos hesitantes, no fio da navalha que é o ermo lugar sem saída: as dúvidas torrenciais. Que depressa se transformam em respostas, acerca das fragilidades que se embainham no crepúsculo de onde se estima vulnerável. Se calhar, os prognósticos terçados em valsas anteriores foram angariados ao desbarato. Foram um embuste. Não só por serem uma imagem distorcida, como por terem investido a fundo na convicção de um estatuto providencial. Não passavam de uma metáfora das ilusões. Dir-se-ia, caso tivessem sido feitos em juramento perante um oráculo, que era um oráculo com defeito de fabrico. Agora, os estilhaços estão pelo chão, à espera de alguém que os expurgue. Não está ninguém pronto para a empreitada. E parece que os estilhaços são a conjugação verbal do seu ser, decomposto no que é apenas uma poeira indisfarçável. Outrora, os tempos foram a preceito. Estava habituado a ser respeitado. Não sabia bem por que era respeitado, mas sentia-se confortável com a deferência. Sabia que todos os encómios eram vãs afirmações de algo que não quadrava consigo. Preferia esconder a condição. Preferia continuar a ver as genuflexões, o tratamento senatorial, as regalias inerentes à condição de excelência. Continuava perplexo com a condição, sem decair na acusação de si mesmo: não se lembrava que exemplares serviços tinha prestado para ser merecedor de comendas. Um dia, foi como se o chão tivesse sido dissolvido sob os seus pés. Tudo se esboroou. Foram os outros que descobriram o farsante. Em sua defesa, invocou nunca ter mentido: o púlpito foi-lhe legado por outros, que o fizeram seu embaixador, uma imagem gravitacional que interessava ao “bem comum”. Nunca forjou documentos. Nunca mentiu sobre os pergaminhos; apenas omitiu – para os seus padrões éticos, não era malsã equivalência com a mentira. Pediram-lhe autocrítica. Devolveu a exigência. Quem o elevou a tamanho estatuto devia arcar com as responsabilidades. Eles deviam ser os intérpretes da autocrítica. Deviam aprender a não serem precipitados e a confiarem nas suas possibilidades, em vez de esperarem que outros, seus testas-de-ferro, desempenhassem o papel. A autocrítica devia pertencer a quem não confia em si mesmo. 

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