7.11.18

Betão armado (short stories #62)


Rufus Wainwright, “Sword of Damocles”, in https://www.youtube.com/watch?v=wmUVy43tqw4
          A metalurgia de um navio mercante: a pele pétrea que se deita aos contratempos que esperam no mar alto. A pele com a cor do ferro, enferrujada que esteja, mas pétrea. Somos o peito armado que se entrega na armadura contra os impropérios do tempo, contra as vociferações engalanadas, servidas no parapeito do dialeto que se esconde em delicodoces, mas ardilosas, fórmulas. Temos de ser o antídoto contra os assaltos que não gritam a sua presença ao mundo. Betão armado, no intraduzível espectro que cobre as possibilidades conhecidas e se precata a desfavor das coisas avulsas que descompõem o horizonte prometido – das circunstâncias que não têm lugar no mapa. Não capitulando às tonitruantes ameaças que semeiam o medo. Não capitulando aos cantos de sereia que escondem o vocabulário escorreitamente soez. Não transigindo com os mares que se encapelam com as facilidades em moda. Pois é o betão armado humana condição (por paradoxal que pareça). Podemos arrumar no corpo a indumentária do betão armado e, todavia, permanecer altares visíveis de uma imensa fragilidade. O betão armado serve para esconder as fragilidades. É um manto de retórica que se oferece aos covisembainhados na alçada da heresia. Se não envergarmos o betão armado, estamos à mercê das implacáveis contradições que são o pasto fácil para a decadência – a irremediável decadência. Estamos à merce dos que terçam armas contra heresias. Não quer dizer que o betão armado seja infalível. Depende do artífice que congeminar o betão armado necessário, da proporção dos ingredientes que entram na sua composição, e da torrente que se esmaga contra o peito (pode ser que o betão armado se estilhace, cedendo à pressão da torrente). Em solilóquio soletrado, num murmúrio discreto, emancipam-se as palavras quiméricas que se investem no betão armado requisitado. Precisamos de proteção contra os sobressaltos, contínuos ou não, que desaguam à porta. Não precisamos se não das palavras quiméricas, traduzidas em betão armado, para tudo o resto ser indiferença.

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