22.11.18

O foro de novembro


Os Poetas, “Despertar”, in https://www.youtube.com/watch?v=PdGx2y1Jkyc
Estou aqui parado, o carro sobre um chão de folhas outonalmente depostas, e tenho o novembro como testemunha. Não sei se seria melhor dizer que sou observador de novembro. Da sua palidez, meia-tinta entre verão e inverno, já sem ser verão, mas ainda a léguas de se tornar inverno. As pessoas passam na rua. Umas vão para o trabalho, pelo modo apressado. Outras passeiam os seus cães, sem a pressa das primeiras. Estão todas agasalhadas; não sei se é pelo estremunhado que sobrevem ao despertar, ou se se escondem do frio matinal. Talvez exagerem – os que fogem de algo com pressa de chegarem ao trabalho e, por junto, todos os que têm alfândega nos fartos agasalhos. A macieza dos tempos seria conselheira de outros procedimentos. O trabalho não foge. O frio é aparente e sempre uma medida relativa (há outros lugares onde a desrazão se tempera em termómetros agrestes).
Observo este novembro a caminho da sua senescência. O lugar-comum outonal: as folhas caducas que, entre o amarelecido e o vermelho ocre, se desprendem das árvores e preenchem um abundante tapete que se funde com o chão. O chão é o seu cemitério. Árvores à frente, a policromia das folhas: umas ainda timidamente verdes, outras em osmose entre o esverdeado e o acobreado, outras, precoces no envelhecimento, ostentando o acastanhado que é marca de água do outono. Dir-se-ia que o outono acolhe em seu seio o trespassar de todas as feridas legadas e cuida de as anestesiar com a nudez das árvores. Fica tudo à mostra, sem esconderijos. Fica tudo à mostra, à espera da reinvenção de que uma heurística hibernação é zeladora.
Não fujo do outono, nem finjo que se insinua num disfarce. Os relógios não deixam o calendário em pausa. O calendário pode estar pregado à parede, mas as suas folhas não capitulam ao falso êxtase do tempo, que alguns querem anquilosado. Desse ardil não sou refém. Uma medida retrospetiva, de mão dada com um módico de nostalgia, podia açambarcar a ilegítima esperança do tempo retido pelas mãos ávidas de memórias. O outono ajuda a romper o disfarce estéril. Tudo é uma roda viva, com lugares e tempos próprios. Sendo uma roda viva, não colhe avivar a memória com a relapsa esperança da iteração dos tempos. O novembro de agora é sempre diferente dos novembros havidos e será diferente dos novembros vindouros. E esse é o melhor agasalho que podemos dar à existência.
É o foro de novembro. Podia ser a carta foral de outro mês qualquer, com as adaptações necessárias à mudança do palco que o ponha a preceito do mês à escolha. À medida da respiração, do sangue que lateja nas veias, das ideias que se compõem e depois descompõem, dos rostos habituais e dos forasteiros, das páginas abraçadas pelo olhar, das palavras não reprimidas, do contínuo desfolhar de um calendário que é a invencível força da vida.

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