Grizzly Bear, “Losing All the Sense” (live on the Current), in https://www.youtube.com/watch?v=8L-k-WZ9N8I
“Tenhamos consciência bem clara de que escolha de um regime não democrático, por vontade da maioria, não é um exercício de democracia, é a violação dela.”
António Cândido de Oliveira, in Público, 31.10.18, p. 45.
Para começo de conversa: execro os totalitarismos, sem distinção de grau nem viés do olhar. Todos, sem exceção. Julgo não ser árdua tarefa inventariar os critérios mínimos que impedem os regimes totalitários, ou governantes com pendor autoritário, de serem acolhidos na casa onde se cultivam valores políticos consentâneos com a democracia. E que, fora desses limites, deve ser trancado um cordão sanitário que não transija com os que abjuram aqueles valores, seja nas ideias, seja na mera retórica.
Da mesma forma, causa-me espécie a arrogância intelectual de quem patrulha a democracia e decreta, do alto da sua sapiência (ou apenas da sua vontade – que vale o que vale: tão importante como qualquer vontade individual), que a vontade da maioria não deve ser respeitada. Não me importa que fruam indignações contra os resultados das eleições presidenciais brasileiras. Estamos em pé de igualdade: também acho Bolsonaro execrável e temo pela saúde do regime vigente, se forem passadas aos atos as palavras radicais que bolçou durante a campanha eleitoral. Também considero inaceitáveis os julgamentos de valor sobre os eleitores que decidiram votar no candidato vencedor. Era o que mais faltava, levarmos com a pesporrência dos que distinguem os “eleitores bons” dos “eleitores maus”. Até há minutos, ainda era vigente a regra (princípio fundamental, aliás) da igualdade do voto.
Ao contrário do que alguns ultrajados defendem, o resultado das eleições no Brasil é legítimo. É democrático. Repousa nos alicerces do jogo democrático. Não adiantam os argumentos elaborados sobre o húmus sociológico da eleição (a multiplicação de notícias falsas que contaminaram a campanha, um sinal preocupante; ou a escolha do candidato vencedor mais como rejeição dos últimos dezasseis anos de governação do que de genuína adesão ao seu – quase ausente – programa; etc.). Arregimentar mil e uma justificações para um resultado eleitoral que nos desagrada como pretexto para a sua desconsideração é profundamente antidemocrático. Até a ver, o povo continua a ser soberano. Exibir este pretensiosismo intelectual não é abonatório das credenciais democráticas de quem assim se exibe; não é compatível com o vértice axial da tolerância imanente a tais credenciais: é uma contradição de termos, o epítome de incoerência. Acresce outro efeito contraproducente: confrontados com a arrogância intelectual deste jaez, os votantes poder-se-ão sentir ofendidos. Poderá até acontecer que a ofensa seja interiorizada por outras pessoas, que não votaram em Bolsonaro, mas não aceitam a bazófia militante e, em manifestação reativa, se juntem aos intolerantes.
Não acredito que haja tutores da democracia, nem que seja atribuída legitimidade a uma milícia que se constitui observatório permanente da democracia, para aferir da democraticidade dos resultados de uma eleição. Sem cair na vertente subjetiva da análise (poderíamos questionar os pergaminhos democráticos de muitas destas personagens), este desnorte poderá cuidar de exacerbar sentimentos, fazendo acantonar, cada vez mais, um numeroso grupo de pessoas em franjas numa das barricadas do radicalismo. Pois tão radical é o votante num radical, como o que declara ser ilegítimo o resultado dessa eleição, decretando o fim da democracia como sua consequência.
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