23.11.18

Carta branca


Virginia Astley, “A Summer Long Since Passed”, in https://www.youtube.com/watch?v=VozZoFLsQQI
Olhamos pelos interstícios da tarde, quando julgamos que o tempo está por defeito. Assinamos riscos aleatórios na folha branca, que compomos a meias. Não há distração que oblitere o exercício lúdico. É daqueles momentos em que parece que tudo à volta se suspende e podíamos jurar que somos os únicos habitantes do planeta.
Seremos os atores principais, ou meros figurantes – não interessa. Um de nós arrisca a primeira palavra que suplanta os meros riscos desordenados que ensaiavam um desenho sem sentido: “alicerce”. Não é repto alinhavado ao calhas. O outro responde e desenha lentamente a palavra-réplica: “confiança”. É como se fosse um poema a duas mãos (e apenas a duas porque é a soma das mãos compulsadas na escrita, uma de cada um). Repetimos as palavras do outro, na metade da folha que açambarcamos para cada um. Na linha finita, apertam-se as letras para o cabimento da palavra. Nem o alicerce nem a confiança se intimidam com o abismo que é a fronteira da página; se preciso fosse, continuávamos a escrita para as nossas mãos, nelas tatuando as legendas que selam a folha já não em branco.
Perguntas: “precisamos de heróis?”. Digo, sem hesitar, acertando o passo com a nossa genética: “não! Temo-los em nós, caso achemos que é preciso nortear a vida pela bússola de um herói.” Arregimenta-se a vontade para outro par de palavras. Desta vez começo eu: “maresia”. Não precisas de esperar muito para cintar o desafio: “janela”. Não te contentas com uma palavra e, ato contínuo, fazes deslizar vagarosamente as letras que, dizes, compõem a palavra-irmã da por ti escolhida: “manhã”. Ficas à espera da minha palavra para completar a quadrilogia. Acerto o passo com a tua sintonia: “ternura”.
Unimos as pontas que estão desatadas pelo sortilégio das palavras soltas. Detemos o olhar no entardecer que se firma no horizonte, enquanto o sol desmaia na véspera do anoitecer. As mãos entrelaçam-se e sentimos as veias que transportam o sangue em combustão. O vento despenteia os cabelos, mas não damos o flanco. O mar está diante dos olhos a moldar a quimera de que somos fautores. Olhamos para a folha, já não em branco. Observamos as caligrafias diferentes que se unem no pressentimento contínuo, uníssono. O manuscrito sela um contrato com mais valor do que todos os contratos arquivados em notários. E damos conta que, antes do exercício conjunto, antes de depormos as palavras sortilégio, a folha em branco era isso mesmo – uma folha em branco. 
Tomámos uma resolução: demos carta branca um ao outro, e por isso soletrámos, na carta partilhada, com a vaidade do que somos em reciprocidade: alicerce, confiança, maresia, janela, manhã, ternura. Não podia haver carta branca se não fossemos penhores destes motes. 

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