20.11.18

O espelho embaciado (short stories #70)


Cat Power, “Stay”, in https://www.youtube.com/watch?v=f-Tsk-cPXxI
          As mãos acorrentadas à ferrugem ocultam um módico de atenção às homenagens do mundo. Pontes a eito percorridas com o convencimento de proezas são trazidas à colação, como se de proezas se tratasse. Não se convidem as avinagradas planícies, trespassadas pelo estio, vulneráveis ao sol afinado que cresta os vestígios de vegetação. Tudo parece uma tremenda nebulosa. A nitidez das coisas foi açambarcada pelas manhãs estremunhadas – estremunhadas porque são tomadas de assalto ora pelo nevoeiro em riste, ora por dias chuvosos que amputam a claridade; ora por um espelho embaciado. Diante de mim, o espelho em sua bulimia, o espelho embaciado. Não cabe a denúncia destes preparos sem, a seguir, a força braçal cuidar da claridade do espelho. Se é sabido que um espelho embaciado não cumpre sua função, impõe-se o dever de o fazer regressar ao estado que o habilita para a função dele esperada. Não é sabido se a diligência é bastante para devolver a nitidez ao espelho. E que seja: será esse o estado desejado do espelho? Em diletas contrariedades, diz-se que é preferível a ilusão; o seu contrário (o regaço alinhavado pela claridade de um espelho desembaciado) será ingrediente acintoso, uma dor pungente que entra pelos olhos e esfaqueia a carne funda. Que sei eu? Não sou oráculo para aferir, em jogo de cintura divinatório, a vocação da imagem devolvida pelo espelho. Não sei se é boa a sua têmpera, ou se corporiza um cortejo de coisas grotescas. Não posso permanecer no limbo. Exige-se-me uma decisão. Num impulso sem lucidez, vou por onde o instinto ordena. (O que fermenta alguma inquietação, pois não tenho por costume dar o flanco aos instintos – e se deles sei o paradeiro, é para deles me apartar.) Do espelho desocupei as gotículas finas que o tornavam baço. Não sei dizer o que me foi dado a ver. Era uma imensa constelação de imagens, sobrepostas umas nas outras, um ergástulo onde se desalfandegava a matéria-prima do caos. Tomei conhecimento que o caos tem uma imagem eivada de claridade. Não me encomendei ao arrependimento: o caos é desafio por diante, uma agenda preenchida de obstáculos que têm o condão de, por o serem, se prestarem à sua ultrapassagem. É preferível à anemia em que é versado o espelho embaciado. A anestesia é o fingimento mais detestável.

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