Ryuichi Sakamoto, “Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=8tKfYwc4zxA
Um desenho – ou uns sinais com o selo do olhar – seriam suficientes para apalavrar os sentidos. Seriam o dialeto exclusivo. Penhor de gramática própria, volúvel, enquistada nas regras ditadas pela vontade do momento. As cores teriam significado. H0je, pois amanhã poder-lhes-ia ser atribuído outro significado. O silêncio não seria silêncio. Seria um silêncio tradutor de palavras ricas, um dialeto com aspirações a idioma. Vocabulário feito de signos, gestos, partituras onde musicais estrofes veem vertidas, viagens por lugares nunca demandados, sons guturais da natureza, fotografias numa exposição, o frio e o calor orquestrados pelo clima, a expressividade de um gato que fala através de nós, os códigos sociais de que queremos exílio. Nem que fosse um dialeto restringido à exiguidade das duas pessoas que fundimos ao sermos posse do amor. Já sabemos que há impressões que valem mais que as palavras que possam ser inventariadas. Já sabemos que, por vezes, nos detemos à frente da alvura da folha e as palavras não a querem tingir, pois a alvura da folha encerra em si o paradoxal oposto do vazio que os observadores diriam ser o caso. No dialeto, acastelam-se os sonhos que são sonhados por dentro de sonhos, em palimpsestos com marca registada. Não cuidamos do vento desassisado que ecoa nas árvores, fazendo-as pender assustadoramente. O vento tem vontade própria; a que quadra com a nossa, e imperial, vontade. Inventamos um dialeto para dar corpo à vontade que triunfa por dentro de nós. À vontade do que seja arregimentado pela vontade de que somos tutores. Desse modo emprestamos as cores às estações. Batizamos cidades com a nossa presença. E até a chuva, pretérito imperfeito para a maioria, é uma mercê que contratualizamos em passeios junto ao mar. O mar é testemunha do nosso dialeto. De como damos os braços ao amplexo em que somos uníssono. Por mais idiomas que soubéssemos, nunca nos seria dado a aprender o dialeto de que fomos autores se não o tivéssemos cerzido com as nossas mãos. Não é legado; é um pedestal onde deitamos a sumptuosidade que somos, e esse é um nada maior que todos os mundos juntos. E matamos os fantasmas contumazes, as bermas contaminadas por onde nossos pés se recusam a andar, no gregário estiolar que é, em paradoxal circunstância, viveiro do sublime que somos nós. Pois somos o dialeto de que fomos inventores.
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