Mão Morta, “Gumes (Parte V – O Rei Mimado)”, in https://www.youtube.com/watch?v=aDYSB_3K9Dk
- Um dia destes, vi da janela um mendigo a salvar um cão de morrer atropelado.
- Não quer dizer que o mendigo tenha bom coração.
- Essa agora!
- Salvaria o mendigo uma pessoa, se em vez do cão fosse a pessoa a correr o risco de atropelamento?
- Como posso saber? Parto do princípio que sim, o mendigo que salva um cão está disposto a salvar um humano.
- Não tires conclusões precipitadas. O mendigo pode ser um insurgente contra as trapaças que a humanidade (e o mundo em geral) contra ele conspirou. Se for o caso, o mendigo mais depressa socorre um animal que uma pessoa.
- Não posso concordar. Primeiro, estás a partir de uma suposição. E não sabes se ela tem fundamento. Segundo, estás a intuir um comportamento como consequência do pressuposto que tomas como válido. Há mais complexidade, muito mais complexidade. O que transtorna o teu raciocínio linear.
- É possível. Muitas vezes, até os teóricos cujos nomes ficaram imortalizados partem de modelos simplistas para explicarem uma teoria. Propositadamente simplistas, para poderem formalizar o raciocínio.
- Aqui trata-se de um simples ato humano. Tu não salvarias o cão se visses que estava na iminência de ser atropelado?
- Depende. Se pusesse em risco a vida, reprimia o instinto. Fora disso, talvez fosse movido por um impulso de salvação do cão.
- Não respondas já, ainda não tirei as medidas todas aos pressupostos da hipótese. Aqui vai o dado importante: não punhas em risco a tua vida (na salvação do cão).
- Provavelmente, socorrê-lo-ia. Não me peças para dançar ao som de hipóteses. São tantas as vezes em que teorizamos sobre um comportamento e as contas saem furadas, fazemos o contrário do que teorizamos.
- Concordo. Mas não abdicamos de cerzir uma teia onde cristalizam os comportamentos esperáveis.
- Mesmo assim, não vou dizer que faria uma coisa ou o seu contrário, ou uma hipótese intermédia.
- Lembro que, lá atrás, foste tu que mergulhaste na complexidade das suposições, o que é, deveras, do foro da teorização.
- Dou-te a razão. Nunca foste atraiçoado por uma incoerência?!
- Esta anatomia terçada, em que se sopesam argumentos diferentes, parece uma discussão montada em palcos diferentes. De alguma forma, um diálogo, não digo, de surdos; mas um diálogo impossível, porque as vozes operam em diferentes frequências.
- Insinuas que não estou ao teu nível?
- Ou o contrário: eu é que não estou ao nível em que colocaste o diálogo. Não te abespinhes! Pergunto de outro modo, para alijar sensibilidades extremadas (pois pareces ter um complexo qualquer contra os canídeos...): se fosse uma pessoa a correr o risco de atropelamento, ias em seu socorro?
- Respondo o mesmo: depende das circunstâncias. Não cometeria a tolice de avançar para a estrada se a salvação determinasse um risco para a integridade física, ou até a morte.
- Voltamos aos pressupostos que instruem as hipóteses: não corrias risco nenhum; era uma questão de ganhos, apenas – caso avançasses para a rua e tirasses, digamos, a pessoa distraída da frente do carro conduzido por outra pessoa distraída.
- Agora quem complexifica és tu...
- E que farias?
- O que me fosse dado a fazer na altura. O que agora responder é irrelevante. Se for para apaziguar consciências (sobretudo a tua...), diria que corria a salvar o cidadão. E muito provavelmente, o cão também. Se me queres tributário da honestidade, não estou capaz de assegurar que, perante o caso concreto, seria a minha decisão.
- Concluímos que não adianta hipostasiar, deixar o pensamento percorrer as muitas variáveis equacionadas. A prática é, definitivamente, adversária da teoria.
- Quase sempre.
- Pobres os filósofos. É por essas e por outras que os filósofos são tão menosprezados.
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