Rosalía, “Malamente (cap. 1: augurio)”, in https://www.youtube.com/watch?v=Rht7rBHuXW8
Era pedestal, o pergaminho (ele preferia usar “pedigree”, para dar a entender que sabia idiomas). Absolutamente imperativo encontrar comparações, portanto, fazer uma projeção para o exterior e intuir as dissemelhanças. Tinha sempre de sair por cima, triunfante na hermenêutica comparatística. Ato contínuo, era como se estivesse tomado por uma embriaguez colossal, as imagens todas distorcidas, sem dar conta (efeitos do ébrio estado mental): era como aqueles bem-parecidos que se fitam demoradamente ao espelho, num onanismo ufano, encomendando às limalhas do pensamento a observação da superior condição do ser cuja imagem era devolvida pelo espelho. Até que o sortilégio das ilusões, em comandita com um estado de pré-alucinação, fizesse crer que a imagem devolvida pelo espelho era maior do que a imagem nele projetada. E, pobre alma, o desfile de orgulhos não tinha proporção: se não vivesse acantonado na ilusão de si mesmo, se não fosse fautor de um auto-desenho desmedido, teria a humildade de reconhecer que as proezas (se as houvesse) eram esparso retrato de si. Era tudo o seu contrário. Todavia, sentia que era a enseada por onde entrava uma aura só ao alcance dos predestinados. E enquanto os pés se metiam ao desconforto de um caminho alcantilado, à medida que subia a montanha tinha de si a ideia que era maior do que o estatuto seu. O olhar projetado no firmamento, e em sendo o firmamento um plano inclinado sobre o olhar, introduzia o vício de perspetiva. Ninguém o desmentia. Uns, por desinteresse (ele que se amanhasse na altura de recolher os estilhaços, depois de cair em si e reparar que era um eu muito longe da imagem que de si tinha). Outros, porque se entretinham com as alucinações variegadas. Ele tinha ambições volúveis, mas o denominador comum era a ousadia. Fazia lembrar aqueles vaidosos que ostentam motor de dimensões generosas e depois não sabem o que fazer com tamanha volumetria. Um dia, um amigo, em estando desavindo com a manhã e o resto do mundo, deixou cair: “essa cilindrada não é para qualquer um. Só os habilitados a conseguem domar. Desengana-te: não é, manifestamente, o teu caso.” E ele, teimoso com a desinvenção de si mesmo, desviou o assunto, acusando o amigo de inveja e de má-fé. Alheado dos pergaminhos da existência, nem a inconfidência do amigo (um lampejo de realidade) subtraiu a serenidade do sono.
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