15.11.18

Teoria geral da indecisão (short stories #68)


Dead Can Dance, “Act II – The Mountain”, in https://www.youtube.com/watch?v=7em5haBGxz4
(Para ler como o avesso do texto anterior)
                  Um mar, um mar interminável, de indecisões. As dúvidas em cascata entrando pelos olhos como água purulenta. As decisões, procrastinadas. Eram muitas variáveis a entrar nas equações sobrepostas que fervilhavam no palco onde uma decisão se impunha. Muitas vezes, quase decidido a tomar uma decisão, fazia marcha-atrás. Não se sabia se era medroso ou apenas escrupuloso. O que se sabia é que não tolerava más decisões. Tinha medo que elas o fossem antes de decidir sobre que decisão devia tomar. Era como se trouxesse a tiracolo um oráculo com a presciência ideal para sufragar, em dotes de antecipação, o que seria arroteado pela decisão que fosse tomada. Nunca lhe disseram – e ele não terá aprendido – que os oráculos são de aprendiz de feiticeiro, um esoterismo à má maneira dos esoterismos. Continuava sitiado pela indecisão. Uma simples vírgula fora do lugar era estorvo bastante para hipotecar todo um texto. Andava com a vírgula para trás e para a frente, ora a suprimindo, ora a colocando de volta ao lugar que tinha no início da demanda, e não dava o texto por rematado. Em cima da secretária, um amontoado de papeis amarrotados, todos com resoluções inacabadas, decisões à espera de decisão, textos tão rasurados que nem ele percebia, entre a inextricável mancha de texto, o que estava escrito. Vivia afogueado pelo estigma do malogro. Odiava saber que uma decisão podia ser errada. Odiava mais se a decisão arrastasse vítimas inocentes (queria crer que era altruísta). Foi passando pela vida sem grandes decisões de que se recordasse. (Não cabem na contagem as decisões rotineiras, do quotidiano.) O deserto de decisões estava na inversa medida dos arrependimentos que o asfixiavam. Perguntava sempre às divindades se uma decisão recusada não era fértil pasto do arrependimento. As divindades retribuam com indiferença, não devolvendo resposta – o que ampliava a perplexidade que o consumia como um miasma indisfarçável. Um certo dia, pediram-lhe para decidir se, diante da encruzilhada, tomavam a estrada da direita ou a estrada da esquerda. Não tivesse sido levado à força pelos amigos, ainda hoje estava na raiz quadrada da encruzilhada a fazer contas de cabeça.

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