15.4.20

Acerto de contas (ou: portugalidade exacerbada, cortesia de uma pandemia)


Pavement, “Infinite Spark”, in https://www.youtube.com/watch?v=cO7P6vXbnok
Mote: não haverá coisa pior do que chamarem “Suécia do Sul” à terra pátria?
Não tenho a propensão para atribuir crédito aos adágios populares. Desta vez, peço de empréstimo um deles que é o retrato fidedigno do sentimento esquizofrénico que sobre nós se abate por estes dias de pandemia: “há males que vêm por bem”. E digo: sentimento esquizofrénico. Pois estamos amordaçados pelo pânico da doença e ao mesmo tempo ufanos de tanto sermos paradigma para os outros, que – diz-se – não têm tido a mesma sorte no combate à pandemia. 
É como se a pandemia fosse a oportunidade para fazermos um acerto de contas com uma portugalidade mal resolvida. Quando os tempos vão de feição, a tendência dominante para a melancolia (é o fado que resiste – e aqui uso o termo no sentido artístico) e um coletivo decair para a depressão colocam-nos como o pior dos exemplos. Estamos na cauda de quase tudo, quando é preciso puxar lustro ao desorgulho pátrio. Os outros são sempre exemplo. Nós não somos exemplo para nada. O que explica que, a espaços, quando um concidadão alcança notoriedade internacional e figura num escol, saímos temporariamente da depressão coletiva e fazemos nossas, como coletivo, as proezas do dito concidadão. 
Agora é tudo ao contrário. São tempos de emergência. As pessoas andam com medo de serem apanhadas pelo coronavírus. (Menos os inconscientes que estão convencidos que nada lhes pega e os velhinhos que se lamentam que se não morrem de mal morrem da cura e preferem morrer do mal.) O vírus viajou do oriente para o ocidente. Como estamos na extremidade ocidental da Europa e como teremos aprendido com os erros dos outros que nos antecederam no choque com o vírus, temos sido exibidos como exemplo para os outros países (de acordo com muita comunicação social). Até na política as armas foram depostas. Quase ninguém ousa criticar o governo. Os que se aventuram na empreitada, são imediatamente apostrofados – como se, por estes dias, uma extensão do estado de exceção fosse a proibição da crítica, dando cobertura à reanimação de uma união nacional sob pretexto da situação de emergência.
São exemplos atrás de exemplos. É o vice-primeiro ministro espanhol, homem de extrema-esquerda, que elogia o líder da oposição em Portugal por ter baixado as armas. Foi um enfermeiro português que cuidou do primeiro-ministro britânico durante a hospitalização para se curar do vírus. Ato contínuo, é o incansável presidente da república que telefona para o épico enfermeiro, condecorando o orgulho pátrio. São os vários países europeus que põem os olhos na estratégia portuguesa de combate à pandemia, tentando perceber o “milagre” (sem que os observadores cuidem de comparar os números com objetividade para perceberem que não há milagre). É o primeiro-ministro que põe em sentido o ministro das finanças holandês por este ter ultrajado a Espanha, como se fosse o procurador dos interesses espanhóis, quem sabe se por este país estar tão diminuído pela devastação do vírus que ficou sem reação política – e, ato contínuo, os jornais espanhóis aplaudem o que, de outro modo, seria entendido como uma ingerência. E é Portugal, alcunhado como a “Suécia do Sul”, exaltando o orgulho pátrio de muitos que travam conhecimento com a redenominação e ficam extasiados, os mesmos que exalçam a portugalidade e não se incomodam com a adulteração dessa essência identitária quando chamam “Suécia do Sul” ao seu país.
A mudança radical de hábitos de vida, de mão dada com o medo do contágio do vírus, tem semeado uma dose homeopática de vivo e intenso orgulho pátrio. Eis outro paradoxo nacional, de que fermenta uma idiossincrasia: é preciso estarmos à beira da apoplexia para exaltarmos a portugalidade. Pois, “há males que vêm por bem”.

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