14.4.20

O filósofo não inocentemente honesto


Branko, Ana Moura e Conan Osiris, “Vinte Vinte”, in https://www.youtube.com/watch?v=eORRKrcJ8BU
Talvez se possa elaborar agora uma modesta teoria da conspiração: e se (...) o sistema como o conhecemos está em profunda crise, que não pode continuar na sua forma liberal-permissiva existente e está a explorar implacavelmente as epidemias para impor um novo sistema? O resultado mais provável da epidemia é que um novo capitalismo bárbaro prevalecerá: muitos idosos e fracos serão sacrificados e deixados morrer, os trabalhadores terão de aceitar um padrão de vida muito mais baixo, o controlo digital das nossas vidas continuará a ser uma característica permanente, as distinções de classe tornar-se-ão (muito mais do que agora) uma questão de vida ou de morte
Slavoj Zizek, Pandemic! How Covid-19 Shakes the World, London: OR Books
Zizek volta a espalhar a confusão. Ainda a pandemia vai no adro e já deu ao prelo uma análise sobre o fenómeno. Limito-me à profecia auto realizável na citação que retirei do livro. 
(Ou a profecia que Zizek gostaria que se realizasse contra a sua linhagem ideológica, pois continua a ser um filósofo do apocalipse; aposto que Zizek ficaria sem objeto de observação se algum dia o mundo, ou um pedaço dele, correspondesse às suas preferências ideológicas).
O filósofo espanta pelo desassombro: admite, em registo irónico, que o desenho do futuro após a pandemia é uma “teoria da conspiração”. Mas não será uma teoria da conspiração inocente, nem Zizek se inocenta ao esboçar esta “teoria da conspiração”. Primeiro, o sistema capitalista está a explorar a pandemia para sobreviver à crise em que está mergulhado. Falta a prova. Um dos grandes problemas dos grandes “conspiracionistas” (se me é permitido o neologismo) é que congeminam elaboradas teorias, desenhadas com o propósito da demonstração à partida, antes mesmo de serem submetidas à comprovação empírica. As provas ficam para segundas núpcias – ou para o púlpito do esquecimento, quando já ninguém evocar a profecia, extinta na espuma da efemeridade, datada e inútil porque não corroborada. 
Segundo, o que aí vem, depois da pandemia passar, é o “capitalismo bárbaro”. Anda grande parte dos analistas (entre eles, filósofos) a pressagiar uma mudança no funcionamento da sociedade, com um novo equilíbrio entre Estado e mercado que passa pela deslocação do centro de gravidade para o Estado, e Zizek antecipa o “capitalismo bárbaro”. Admita-se que Zizek é, e tem sido, mais radical do que o mais radical dos filósofos que têm escrito provisoriamente sobre a pandemia. Zizek mantém que o aparelho do Estado contemporâneo é servil aos interesses do capitalismo. Será esse o pano de fundo para a profecia do “capitalismo bárbaro”, decerto com a complacência do Estado burguês que, mesmo depois da reconfiguração da sociedade e da relação entre Estado e mercado, continuará a ser servil aos interesses do capitalismo. 
Esta profecia não tem âncora nos factos observados. Sobretudo se dermos atenção, em alternativa ao catastrofismo militante de Zizek, a outros analistas (entre eles, filósofos) que pressentem o fim do “neoliberalismo” como consequência da pandemia, porque o combate ao coronavírus tem exigido um Estado forte como não há memória desde o fim da segunda guerra mundial. Zizek há de situar esses analistas entre o séquito do Estado burguês e dos que são complacentes com o capitalismo que há de despontar com uma carantonha bárbara. A pandemia terá servido, de acordo com a História do futuro assinada por Zizek, para salvar o capitalismo (e o Estado burguês, possivelmente indistinguíveis) do seu estertor. Em vez da decadência, a pandemia salivará um capitalismo ainda mais forte e intrusivo, mercê de uma pandemia a preceito e com a cumplicidade de um Estado revitalizado.
Até ver (mas, admito, ainda há muito, e decisivo, por ver), o fortalecimento do Estado tem vindo acompanhado de alguma sensibilidade social das empresas. As provas não faltam, mesmo que muitas empresas estejam vegetativas e muitos dos grandes conglomerados empresariais tenham de aprender a conviver com perdas a que não estavam habituados. Aplicam-se exceções, com capitalistas inescrupulosos que se aproveitam soezmente de oportunidades geradas pelo combate à pandemia. Mas onde não há exceções a considerar (a começar pelo próprio estado de exceção decretado por quase todos os países)? 
O que temos pela frente não são teorias da conspiração: são interrogações. Interrogações que se alicerçam no conhecimento dos factos até ao presente e na interpretação que deles fazemos. Não há interpretações universais e ungidas pelo placebo da objetividade. Ainda bem que assim é. Percebo – e até perfilho, em alguma medida – as perplexidades de Zizek quanto ao exagero do estado de exceção que pode sobrar como critério para o futuro; como a submissão aos ditames da vigilância digital pode constituir um precedente para o futuro, limitando seriamente as nossas liberdades. Mas isso enquadra uma teoria do fortalecimento do Estado que corresponde a um enfraquecimento do mercado. Usando outro ângulo de análise, pode ser o pretexto para o Estado recuperar as rédeas do processo político, ele que as tinha perdido com a globalização e a interdependência que foram minando a autonomia da decisão política. Poderá ser o pretexto para o Estado vir de novo a cena, já não como o ator envergonhado que sabe, conscientemente, não ser o protagonista que foi no passado. Se alinharmos por esta visão, poderá ser a oportunidade para o Estado se “desaburguesar”.
A ter vencimento este cenário, não configura ele mais Estado e menos mercado, logo, menos espaço para o capitalismo condicionar o processo político como acontecia antes da pandemia? Isto não é profecia, nem teoria da conspiração; é uma interrogação que fica a germinar para o futuro.

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