8.4.20

Uns olhos tresmalhados


Einstürzende Neubauten, “Ten Grand Goldie”, in https://www.youtube.com/watch?v=4S_2Ki6F-iE
Não é espelho recomendável e os olhos não ficam reféns dos rendilhados das convenções. Não querendo ser como os boçais que deitam os cotovelos no amesendar, os olhos revelam-se tresmalhados, insubmissos. Não evitam o espelho pária. Não sabem a geografia que se desembacia através da teimosia do olhar; não capitulam no vago domínio da incerteza, uma incógnita imersa que podia caucionar um recuo ditado pela mão do medo.
Aos olhos tresmalhados, a geografia inaugurada depois das montanhas escaladas pode ser um corpo estranho. Um choque de costumes, dir-se-ia. Abalo sísmico. Esses são os efeitos levados ao olhar quando uma levada de água desconhecida e álgida se abate sobre o corpo inteiro, um choque térmico inesperado. O corpo estremece, um pouco de medo a jogar-se no trapézio das emoções inacabadas. Parece que um precipício habita por dentro do corpo. E o corpo constantemente no ermo, a debater-se com o precipício, sem medo que o precipício o emudeça. É o mesmo princípio básico de um olhar tresmalhado que prefere o alinhavo da originalidade.
As abóbadas do costume não ganham dimensão no olhar tresmalhado. O longo bocejo da habitualidade congemina um fogo áspero, os braços remexendo entre a lotaria inverosímil: é como se tudo fosse inacabado e o tempo fosse um sortilégio em demanda de um permanente descobrimento. O olhar tresmalhado não se intimida com as fronteiras inacessíveis. Coabita com a derrota do impossível e encomenda a superação. Não hão de ser os vetustos zeladores da habitualidade a desenhar o mapa por onde segue o olhar tresmalhado.
Os remorsos só convencem os que estão habituados a estar habituados. Não se fala de redenção. Não se fala de cura. Não há arrependimento emaciado, nem as maleitas povoam a geografia do olhar tresmalhado. A voz prolonga-se em ecos sucessivos, como se a cadeia de montanhas fosse aplanada no dorso da vontade irrecusável. O olhar tresmalhado foi ao outro lado da cadeia montanhosa e está em condições de descrever o que achou. Outro tanto não se diga do olhar féretro, o olhar contingente de si mesmo, os passos freados no simulacro da ausente ousadia, o olhar sem identidade.
Não é mister do olhar tresmalhado perfumar o lugar que habita com um paradigma. Não se lhe ajustam as dores de alma exteriores. Ao olhar tresmalhado importam as cercas levantadas, as fortalezas estilhaçadas, os verbos que deixaram de ser interditos, as palavras que deixaram de ser interlúdios, o rosto não vago das descobertas que no punho do dia se soerguem, ininterruptas.  

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