6.4.20

Miopia


Davendra Bahnart (feat. Vashti Bunyan), “Will I See You Tonight?”, in https://www.youtube.com/watch?v=TtGBLOUt5jY

(Paciente – Senhor doutor: toco no rosto e dói-me; toco no braço e dói-me; toco no peito e dói-me. O que tenho?
Médico – Tem um dedo partido.)
Arnaldo está convencido do que disse. Está convencido da sua opinião, pois é a sua opinião e, por inerência, não é a opinião pensada através de outra cabeça. Até pode ter inspiração no pensamento de outros, mas ufana-se de ser guarda-freio do seu próprio pensamento. Gaba-se de ser um ser pensante. Não tem opiniões levianas. Atribui-lhes credibilidade porque as sabe estruturadas. Se há algo que o irrita é o comportamento das pessoas que têm uma ideia sem saberem porquê, aquelas pessoas que se prontificam a dizer “sim, porque sim”.
Mas Arnaldo não tem lucidez para entender que está acorrentado no interior de si, não sendo capaz de se ver por fora de si. É uma capacidade difícil de se obter, a de sair de si mesmo e do exterior fazer um auto de introspeção para apurar o que seria passível de mudança. 
(Se a mudança é um imperativo, pois a sede de perfeição é anómala.) 
Arnaldo sabe que não é perfeito. O lugar-comum é património adquirido da espécie. Mesmo que considerasse o contrário, ao arrepio das convenções, não seria aceitável pelos outros. Seria a emasculação de um narcisismo que muitos cometem em segredo, reservados ao íntimo onde às suas perguntas são eles mesmos intérpretes das respostas.
A Arnaldo falta o despojamento de si mesmo, como se conseguisse levitar sobre o seu ser para saber como é ser o seu ser. Mesmo que pondere as opiniões que afirma e as ideias que compulsa para o catálogo do pensamento, Arnaldo não admite que essas palavras, essas ideias, estejam fundamentalmente erradas. Não pode admitir. Se admitisse o lugar ao erro no que fala e no pensa, esvaziar-se-iam fala e pensamento. Ficaria refém de um intrigante nada, e o nada é um lugar que Arnaldo tem medo de habitar. 
Arnaldo é contumaz no exercício heurístico das interrogações. Muito embora considere que sopesa os argumentos antes de dar autoria a uma opinião ou de cimentar um pensamento, não tergiversa depois de selar a opinião ou o pensamento. Deixa de haver lugar às interrogações. Arnaldo tem medo de estar errado. O medo do erro faz esquecer as interrogações, como se tivessem sido dissolvidas e a verdade consequente fosse eterna. Como se estar errado fosse um ato doloso, a barbárie que o retira da tertúlia dos razoáveis. Arnaldo não contempla a hipótese de dar o flanco depois de alguém o questionar sobre uma fala ou um pensamento falado. O erro está na casa de partida, em quem hipoteca a raiz do pensamento e a fala que sobe à boca de Arnaldo. 
A Arnaldo falta a capacidade para se questionar desde o seu âmago. Falta a intrepidez de duvidar do pensamento. De o pôr constantemente à prova, não fechando a janela à possibilidade de estar errado, mesmo que a admissão do erro tenha o efeito equivalente do método tresmalhado que o conduziu à morada desse pensamento. Arnaldo vive obcecado com a verdade. Procura emoldurar a verdade – a verdade que considera como tal – no dorso de que faz página para as suas palavras, a constelação de um pensamento. Arnaldo não devia ter essa obsessão. Muitas vezes não é o peito, nem o braço, nem o rosto que doem; é o dedo que neles toca que contém a fratura.
Se ao menos alguém contasse a Arnaldo que não existe a verdade.

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