Siouxsie and the Banshees, “Kiss Them for Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=HpcNaqkrPm8
Os encartados regedores estavam em pulgas. Tempos destes, esta maré de exceção, o terreno fértil para lograrem o que de outro modo lhes estaria vedado. O complexo de farda, impertinente devaneio da autoridade, tinha a cobertura da lei e o consentimento dos súbditos (da sua maioria).
Não podiam dar parte de fraco, os regedores. Teriam sempre de lacrimejar o luto pelos tantos mortos que eram a caução do céu de chumbo persistente, o céu de chumbo que não parecia querer desapossar-se do palco à vista. Os lamentos anestesiavam a mão-de-ferro e acomodavam a anuência dos súbditos. Ficava sempre bem o pranto coletivo, sob o mote dos mandatários do céu de chumbo: “é com grande pesar e consternação que tomei conhecimento do falecimento do senhor...” Se não fosse pela hipocrisia, os mandantes do céu de chumbo não teriam tempo para se lembrarem sequer de uma das vítimas diárias, quanto mais para derramarem um pranto em homenagem a cada vítima. Mas a retórica sobrepõe-se ao demais. Ainda mais.
Pior do que a consagração dos mandatários do céu de chumbo era o numeroso exército de súbditos que protestavam. Não protestavam contra a mão-de-ferro que se abatia sobre os lenientes. Protestavam porque a mão era ainda mansa, apesar de já ser de ferro. Estas abencerragens de uns tempos idos saíam do armário e deleitavam-se com o céu de chumbo de que eram mandantes os meros regedores sem perspetiva além disso. Deleitavam-se com a imagem de uma mão ainda mais férrea e de um céu tremendamente pesado sobre as cabeças dos súbditos, de tal modo que ficariam silenciados por um ar tão pesado.
Com tanta apoplexia vertida nos seus cálices atentos, os súbditos não pressentiam a reinvenção das alfândegas que se julgavam arquivadas. Os lugares voltaram a ser uma sedentária expressão de melancolia, as pessoas impedidas de irem de um lugar ao outro. Os lugares, abraçados pelo silêncio da solidão. O cerco apertava-se enquanto as nuvens grisalhas se acastelavam e roubavam horizonte aos olhares descomprometidos. Para gáudio dos regedores que enfim chegaram à sua autêntica função. Para gáudio dos súbditos anestesiados pelo pânico, que eram doces cordeiros apascentados na imperativa obediência – ou eles próprios regedores abortados, em êxtase com simulações em que deles seria o mandato do céu de chumbo.
Faltava saber, ainda antes do tempo, que cicatrizes sobrariam para memória futura. Que cicatrizes da tanta apatia que fazia rima com o músculo adónico dos mandatários do céu de chumbo. Oxalá não fosse um ensaio do futuro em sua antecipação, o tempo virado do avesso e as entranhas das pessoas em seu absoluto descarnar.
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