9.4.20

O vírus é vingativo ou generoso? (Sobre o maniqueísmo)


Ouçam (uma carta imaginada do Covid-19 para os humanos), in https://www.youtube.com/watch?v=LiWO3m48HV0
“Assim como a saúde de uma árvore, de um rio, do céu vos mostra a qualidade da vossa própria saúde, o que poderá a qualidade da vossa saúde mostrar da saúde dos rios, das árvores, do céu e de todos nós que partilhamos este planeta convosco?”
Kristin Flyntz, “Uma carta imaginada do Covid-19 para os humanos”
A meio da excecionalidade presente, um manifesto tocante como porta-voz do vírus catastrófico. Mas o vírus, falando na primeira pessoa, não se apresenta com a medonha face, como é lugar-comum. O vírus é a personificação do meio ambiente que tem sido estragado por gerações sucessivas de homens e mulheres estultos. 
O vírus é a paga para a nossa desatenção com o ambiente. Um desafio, para repensarmos estilos de vida penhorados por doses excessivas de consumo, por sua vez predispondo crimes ambientais aos quais somos insensíveis, porque seus fautores primeiros. E um apelo para não sermos reféns do consumo, numa introspeção imperativa que convoca ao estilhaçar do materialismo. Não parámos a tempo e o mundo transborda, ameaça transbordar, para além dos seus limites. Não parámos a tempo e agora o vírus obrigou-nos a parar. O vírus, vingativo, dama de honor do ambiente maltratado. Ou o vírus em forma de emboscada em nome do ambiente, contra quem o tem destratado. Vingança, em estado puro.
O vírus forçou-nos a sentir que podemos viver nos antípodas do que fazíamos. Sem pressa. Sem pressão do tempo e de outras empreitadas. Sem precisarmos se não do frugal. Sem indiferença pelo outro, pois somos instados a ir “(...) para além das nossas preocupações individuais e [a considerarmos] as de todos.” Já não é tempo de sermos meros átomos de um todo; temos de perceber que somos meras partes do todo. O vírus promove o nosso reposicionamento. O vírus, bem-entendido, limita-se a proporcionar a oportunidade. Se aprendermos a sua lição (irrecusável, pois quem quer apanhar o vírus?), não há outro remédio se não o nosso reposicionamento. Do desprendimento dos bens materiais, na sua venal utilidade, num regresso à natureza – num regresso à nossa essência humana, não industriada pela conspiração do consumo. Agora que a natureza, por ação do parêntesis congeminado pelo vírus, ficou mais límpida, mais apetecível, obrigatoriamente visitável. Um mergulho na natureza que nos desvia das tentações do consumo, para deixarmos de ser meros peões às mãos do capitalismo. Um regresso à natureza em abono da nossa saúde, para não voltarmos a contemplar a ameaça do vírus como catástrofe coletiva. Somos desafiados a contemplar a natureza, para podermos responder a estas interrogações: “quanto precisam que [ela] seja saudável para que vocês também sejam saudáveis? Como a sua saúde contribui para a saúde da árvore, que contribui para a saúde do céu, para que vocês também sejam saudáveis?”.
O vírus ordena que paremos. Que interiorizemos o medo, que o medo é uma reação natural, legítima. Paremos: sejamos cultores da essencialidade humana, monástica no desprendimento. Desaproveitemos os cânones da desumanização a que fomos levados, sem percebermos esse estatuto. Não, o vírus não é, ele mesmo, o notário da desumanização em curso, com o estado de sítio que de nós faz entes com saudade das liberdades. Isso não é desumanização. Assim o proclama, categoricamente, o vírus. Porque o vírus autoanuncia-se generoso, vingativo e ao mesmo tempo generoso:
“[a]pesar do que possam pensar ou sentir, nós não somos o inimigo. Nós somos mensageiro. Nós somos aliado. Nós somos uma força de equilíbrio. E estamos a pedir-vos...que parem, que fiquem quietos. (...) Nós vamos ajudar-vos. Se ouvirem.”
A fórmula comovente tem o condão de despertar muitas consciências. Logo agora que as consciências fervilham de arrependimento e têm tempo para pensar, adormecidas na hibernação caseira. O que não é de gesta aceitável é um maniqueísmo que traduz o vírus na personificação do ambiente por tanto tempo lesado pela humanidade. Nem o maniqueísmo que se embebe nas mensagens subliminares, um programa inteiro de pedagogia ideológica. Como se o vírus fosse a vingança do ambiente a arquear-se sobre a má consciência das pessoas. Como se o vírus fosse, ao mesmo tempo, uma entidade caritativa que se constituiu momento heurístico para nos repensarmos como espécie.

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