Destroyer, “It Just Doesn’t Happen”, in https://www.youtube.com/watch?v=VmApPGE6Zio
Passei por um jipe da moda que ostentava na parte traseira um dístico com uma bandeira feita metade azul celeste e outra metade da alvura típica da ingenuidade. No meio, um escudo aludindo à realeza. Era um monárquico.
Antes de ir por diante com a argumentação, fique registado para memória futura: as pessoas podem defender as ideias em que acreditam, saibam ou não porque acreditam nelas. Da mesma forma que um comunista tem direito a ser comunista, um monárquico tem direito a ser monárquico e qualquer pessoa tem direito a ser o que lhe apetece. Da mesma forma que exerço a minha liberdade de expressão para escarnecer dos monárquicos como a exerço para repudiar o comunismo (e como devo admitir que alguém me tome de espécie e de mim faça um ódio de estimação). Caso seja entendido como uma manifestação de intolerância, deixo-o à conta dos que assim tresleem a hermenêutica.
Ultrapassei o jipe e espreitei para tirar o retrato do condutor (não na aceção literal do termo). Condizia com o estereótipo. Bigode farfalhudo, levemente dobrado para dentro de si mesmo nas extremidades, um pullover azul sobre uma camisa de riscas, avantajado charuto a quadrar com o sobredimensionamento corporal. O resto, adivinho: sapato de vela, missa aos domingos, tourada quando está na época, caça com os amigos, jantaradas em casas de fado, onde arrotam alarvemente o seu marialvismo. (Uma dúvida: casas de putas depois das casas de fados?) Juram fidelidade à coroa, essa inexistência. Renegam a bandeira republicana, não reconhecendo a legitimidade dos presidentes que a encimam. Se não se esquecerem da coerência, não participam em eleições presidenciais, a menos que o candidato conservador e com a bênção da igreja corra o risco de ser derrotado pelo candidato de esquerda (caso em que se esquecem da coerência). São os chefes da família, pois as mulheres foram criadas por deus para serem obedientes aos homens e para os assistirem na consumação dos prazeres carnais. São contra o aborto, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra a eutanásia – são muito contra as liberdades de costumes e a liberdade das pessoas, em geral. O que quadra com a sua cosmovisão: juraram fidelidade ao rei, e estariam dispostos a sacrificar a vida pelo rei como epitome da pátria. O rei é tudo e tudo pelo rei. Por poucos, uma visão do mundo tão redutora.
Estes embaixadores da heráldica estacionaram no tempo. Ou foi o tempo não passou por eles, numa bizarra versão do elixir da juventude que é procurado por todos os que abjuram o envelhecimento – como se uma coisa atávica pudesse reproduzir um fogacho de juvenilidade: uma contradição de termos. Mergulhados no seu atavismo, são tão curiosidades antropológicas como os comunistas. Mas ninguém lhes chame conservadores. Não se pode conservar o que não existe. À monarquia, nem o formol lhe vale.
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