Gift, “Later”, in https://www.youtube.com/watch?v=beGL5_7WP2c
Não dizias a bota com a perdigota – sem saberes, ao certo, o que a expressão idiomática queria dizer. Ouvias-te, se é que possível a abstração entre os sentidos, e temias que já não fizesses sentido. Era o sentido que deixava de rimar com os sentidos. Como se fosses um súbito embaixador do surrealismo, numa versão recauchutada.
Ao certo: as moedas na algibeira e uma meia rota (a direita). Os sapatos puídos e a limonada que serviram na esplanada e sabia a mofo. Talvez os limões estivessem fora de validade e escondessem umas vírgulas de bolor. Adivinhaste umas cólicas e, talvez, uma convulsão gástrica que levaria de emergência a uma casa de banho. Talvez esconjurasses as ideias pesadamente órfãs que te assaltavam. Era melhor não pensares no assunto e enganares o estômago com uma bebida qualquer que fosse pior veneno. Lá veio um gin tónico suplementado por um toque de tequila.
Regressaste aos pensamentos pretórios. De manhã, quando entraste no metro, estava uma rapariga a tocar guitarra, com o chapéu jazendo no chão a servir de mealheiro à generosidade de quem passava e não estivesse absorto com os múltiplos afazeres que a agenda mental inaugurava para o dia nascente. A rapariga era nova e calva. Ficaste sem saber se a calvície era estética ou se era consequência de doença. Como a interrogação só te ocorreu quanto o metro cavalgava os carris, e como não tiveste o incómodo de sair da carruagem, atravessar para o outro cais, apanhar outro metro e sair na estação de origem, ficaste sem saber. Não era por falta de tempo. A tua demorada condição de desempregado não deixa que te refugies na ladainha das pessoas eternamente afadigadas. Não te podias abraçar à falta de tempo.
Ao anoitecer, deitaste o olhar para trás. Um exercício habitualmente inútil, esse de inventariar o apanhado do dia. Tirando a rapariga calva que tocava um hit da música pop dos anos noventa – talvez isso explicasse a indiferença dos mais novos –, não vinha nenhuma memória ao espelho do tempo que estendias diante do olhar. Devias andar distraído, ou imerso em profundos e, todavia, estéreis pensamentos que te distraíram do ecossistema à volta. Nem te lembravas do jantar (ou, tão distraído, nem te lembraste de jantar?).
Antes que viesse o sono, não querias a anestesia da televisão. Pegaste num livro ao acaso, entre o rol empilhado na mesinha de cabeceira. Era sobre ecologia. Compraste-o há quase dois anos (de acordo com a data de compra que lacras na contracapa, para memória futura). Um dia sentiste a pulsão do rejuvenescimento, ou de apenas atualizares os conhecimentos com o conhecimento moderno, e compraste o livro. Nunca passaste do prefácio. Dava-te sempre o sono quando ias voltar ao livro.
Como andavas refém da insónia, caíste resolutamente no livro que explicava os fundamentos da ecologia moderna. Podia ser que o sono se libertasse das algemas. E que o livro tivesse, afinal, serventia. Para não voltares a ouvir alguns dos mais próximos, em tom de reprovação, a advertir: “o teu mal é sono”.
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