Mão Morta, “No Fim Era o Frio” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=rq6sEc2czrE
A ceia dos despojados começa. Cumpre-se a proibição dos lamentos. Não faltam almas espezinhadas pelo infortúnio, graças emagrecidas, rostos cavados pelas lágrimas que fundearam o seu caudal, colonizando a pele. Não faltam angústias sem freio, se a elas voltasse o errático divagar em forma de compensação.
As almas amesendadas cumprem a solidão. Juntam as solidões num disfarce arrematado, como se fosse preciso subir ao navio para fugir das encomendas dos lugares à volta, para fugir de pessoas. Entoam palavras em surdina, num murmúrio que evoca os cânticos crepusculares que emprestam um clamor que se arrasta pelas janelas onde se estendem corpos desassisados.
Desmentem propostas de ditadura, um enlevo mordaz que traduz a impostura, desaprovando as catenárias que convidam a fome insaciável entre os corpos prostrados. As faianças dão cor aos braços caídos. Nem assim um lamento, uma dor compungida agarrada a um verbo deslassado, a noite gasta em insónias inférteis.
Sob os pés destemidos, um precipício avança na vertical para o fino recorte do rio. Naquele momento, ninguém tem medo de vertigens. Ninguém cala a voz para protestar contra a extinção da vontade ditada em forma de lei, ou apenas por usufruto habilitado pelo costume. A matéria incandescente ferve na boca do vulcão, perenemente aceso para ninguém esquecer que é um vulcão. As vozes admiradas esquecem os contratempos: é poesia bucólica, a que se entretece nos dedos que gravitam desde os socalcos que descem até ao rio fundo. Os socalcos civilizam o precipício, que deixa de ser um pesadelo.
Os pés desenham formas geométricas na água fria que desce desde a montanha. Um rumor magro despenteia o silêncio: há quem diga tratar-se de um poema sem gramática que não seja a da imagem composta pelo caudal a vencer o chão pedregoso. O medo e a angústia foram traduzidos num idioma que os esconjurou.
Os braços desamarrados militam em desfavor do pavor dos tiranos que investem contra a sua vontade. Se houvesse um nevoeiro a destempo, seria para calar esses tiranos – e dizem, para que não fiquem dúvidas, a única forma de censura permitida. Se os rostos não se escondessem no seu próprio esperanto, não ficavam reféns dos arranjos avulsos. Têm a tela entesourada como pano de fundo. E os sonhos, que se refugiam dos imprudentes sacerdotes que se saciam da vontade dos outros.
Sem comentários:
Enviar um comentário