11.7.24

Semelhante ao zero

Cocteau Twins, “Bluebeard”, in https://www.youtube.com/watch?v=GD-EdxU-rm4

O princípio da separação dos lixos ensina que as coisas têm um cadastro, elas próprias arrastam pela asa o seu cartão de identidade. Não se estranhe que sejamos uma identidade antes de termos a titularidade do sujeito. Contamos pelo que somos, não por quem somos. E convivemos com o preceituado, assim que somos ensinados que a civilização tem custos que somos nós a suportar. Muitas vezes, esquecemos de comparar os custos com os proveitos.

É pelas ameias da civilização que se tecem as regalias que são a contraprestação dos custos necessários. Trocamos benefícios por obrigações. O sinalagma é o esteio das sociedades. Como ensinam a partir dos bancos da escola, não se queira ter o dado e o arregaçado. Para termos, temos de dar. E damos para termos o direito a ter. Como se ensina a partir dos bancos da escola – e depois é sepultado sob o peso de uma rocha pesada, quando os princípios cedem à vulgaridade da prática que arremata o desmame da igualdade.

Como damos para ter e temos para dar, participamos num jogo de soma zero. A arquitetura por que nos regemos baseia-se na lógica da aritmética nula. Calculado o deve e o haver, o que sobra é um zero. Se formos acríticos seguidores da ordem estabelecida, é um zero afortunado. Sinal do equilíbrio, a banalização da igualdade que também se ensina desde os bancos da escola. Ou, quando a desigualdade teima em agredir a alma da sensibilidade social, torce-se propositadamente o deve e o haver para que alguns fiquem a haver e sobre outros repouse o encargo do débito. Até aqui o equilíbrio é atingido: o crédito de uns provém do débito dos outros, uma circularidade potencialmente perfeita. A equidade é o cimento que escapa à alçada da corrupção dos desvalores.

Como um todo, aspiramos ao zero. Ao contrário dos vieses habituais, o zero não é neutro nem é anulação da matéria numérica. É equilíbrio. Através do zero somos semelhança.

Mas, até ver, o zero não passa de um sonho que transita no éter da utopia. Até ver, ninguém é zero. Todos somos dissemelhantes.

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